Os afetos são a motriz invisível, inodora, inaudível, que os pragmáticos gostam de ignorar. Até vinte e quatro horas antes do fim do prazo de escolha. A partir da vigésima terceira hora somos todos sentimentais.
terça-feira, 30 de maio de 2017
segunda-feira, 29 de maio de 2017
Ciclo de vida dos jaracandás
Enquanto dormias, as flores dos jaracandás amanheciam mortas e as ruas, ainda ontem tapetes liláses, iam-se cobrindo de um ouro decrépito, resinoso, agarrado à sola dos pés.
Colou-se-me a putrefação dos jaracandás e a imagem da boneca, meia despida, abandonada por entre as ervas. Os olhos grandes, azuis, acusadores, erguidos para o primeiro céu da manhã.
Enquanto dormias, desintegrava-se, alheia à tua inocência, a beleza das coisas.
sexta-feira, 26 de maio de 2017
Teoria do caos
A oscilação das asas da minha borboleta tem exata correspondência com aquele final de manhã em que nos cruzámos numa das ruas mais movimentadas de Lisboa e, contra todas as probabilidades cósmicas, no espaço de tempo que leva a dizer a frase "dou um estalo na cara a quem me disser que é melhor amar e perder do que nunca ter amado" percebemos o que havia para perceber.
Então, enquanto ainda o julgava para sempre perdido por entre a multidão, tirei do bolso do casaco o rascunho do destino que tão pacientemente havia desenhado, transformei-o numa inocente bola de papel e atirei-o para o primeiro caixote do lixo que encontrei.
Quinze anos e dois meses mais tarde, no dia em que ele morreu, já aquele encontro casual tinha mudado profundamente a vida de centenas de pessoas que nunca o viram.
Ontem, ao ser confrontada com um dos efeitos de longínqua distância do furacão que se seguiu a esse bater de asas, não consegui, inutilmente, evitar perguntar-me se valeu a pena.
Tivesse um dos dois optado por outra rua, ou demorado mais um minuto numa das lojas, ou escolhido o lado da sombra, e o ADN da humanidade seria para sempre outro.
Percebi depois, ou sempre o soube, não sei, que, independentemente dos danos colaterais, a dúvida a respeito desse encontro, encerraria o mesmíssimo grau de estupidez de não saber se valeu a pena conhecer-me a mim própria.
quarta-feira, 24 de maio de 2017
Formiga
Armazenei-as o mais que soube. Mas, ao entardecer, pendurada no telhado pelos dedos dos pés, vi fugir-me da vista a última das metáforas.
Este inusitado início de tristeza, bem sei, não é se não o espaço vazio que antecede a chegada da realidade.
Ninguém precisa da realidade.
sexta-feira, 19 de maio de 2017
quinta-feira, 18 de maio de 2017
Ganhar a perda
Depois de deixar de contar as luas, passaram tantas que já não saberia convertê-las em anos. Escureceram as noites brancas e aprendi o sono. Profundo. Sem sonhos. Sem a sombra dos jaracandás, o cheiro das camélias junto ao lago ou a sensação da montanha nas costas.
O sono levou tudo:
a febre do seu corpo na minha pele; o exato peso da mão dele na minha; o jazz no tom da voz.
Ordenei às células o esquecimento e elas, implacáveis, obedeceram-me, assassinando-o.
Ganhei a guerra do desamor.
Instalei-me no amplo território das noites escuras e silenciosas onde nenhuma candeia alumia o caminho, nem a rebelião dos sonhos se faz ouvir.
O diabo a quem vendi a alma cumpriu integralmente a sua parte.
Ficou este nada, expurgado do que, afinal, era tudo.
terça-feira, 16 de maio de 2017
A papoila
Quando partir, pensei, se alguma vez conseguir partir, pensei, quem reparará naquela única papoila que todos os anos nasce no mesmo canteiro em frente à minha porta? Quando já não estiver aqui para numa qualquer manhã de março ser surpreendida pelo regresso da mesma e única papoila, pensei, como farás para que me lembre que exististe em mim?
sábado, 13 de maio de 2017
Diz Herberto
– A água tem um som.
Mar inesgotável que desliza no silêncio.
Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo:
ouço-me para dentro. Mal posso
dar no mundo um passo
sem tremer: sinto-me
balouçado num sonho imenso, ando
nas pontas dos pés.
E estou só e a noite.
Há palavras que requerem uma pausa e silêncio.
(...)
Herberto Helder, Poemas Completos
segunda-feira, 1 de maio de 2017
A Senhora dos Papagaios
E então, procurámos Tagik, o berbere contador de estórias, nas portas do deserto. E uma vez mais sentámo-nos no interior de uma tenda feita do azul dos sonhos, por cuja fresta de pano se viam, ao longe, as areias do tempo. E uma vez mais o velho berbere estendeu a mão ressequida para receber as nossas moedas que fez tilintar na mesma taça de prata trabalhada.
E então, Tagik, de voz arrastada, contou-nos da Senhora dos Papagaios:
Existiu no início dos dias, mas Alah é quem mais sabe, uma mulher que desafiou as leis do universo.
Ousou, sob o império do monocromático nude, fazer-se acompanhar por uma mala amarela. E perante o pasmo do povo e a reprovação dos deuses e a revolta dos animais a mulher sentou-se numa praça de pedra branca e abriu a mala e dela retirou mil papagaios, fazendo-os empoleirar-se na palma da mão, primeiro, entre as suas omoplatas, depois, no eixo da lua, por fim. E os papagaios espalharam-se pelo mundo e criaram as florestas e os piratas.
E os velhos deuses, afrontados, castigaram a mulher, tirando-lhe a si a voz que, por vingança, deram aos papagaios; aprisionando-a, muda, no verde imóvel de uma tela; deixando-a para o todo o sempre agarrada à sua mala amarela, fonte de todo o mal.
E ali ficou, para toda a eternidade, o cruel aviso aos homens.
Mas Alah é quem tudo sabe.
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