quarta-feira, 21 de maio de 2014

A contra-teoria

Enquanto a tempestade cruzava os céus e revolvia as nuvens e abalava a ordem das ondas do mar e estremecia os barcos e assustava as gaivotas e desfazia os nossos passos na areia de outros dias, enquanto no abrigo da baunilha das velas e dos versos das páginas abertas dos livros e do linho das fronhas e das notas do saxofone ao fundo a impor-se ao vento, enquanto racionalizava a nostalgia com o empenho metódico de quem isola componentes de fragrância num perfume raro, formulei a contra-teoria.
Não são os detalhes. Os centésimos de segundo a mais que um olhar se prende no outro, a expressão do desconforto no estremecimento do lábio inferior, a estranha inflexão dos rr no final das palavras, dois dedos que brincam um com o outro, o riso refletido nos ombros, o pé esquerdo em posição desalinhada...
É a essência. A sensação dos pés descalços no chão gatinhado, a música de memória intra-uterina, a simplicidade de um silêncio em branco, a falta de estranheza na proximidade do corpo, uma expressão que poderia ser nossa de tanto que a sabemos, em suma, a sensação rara de se ser apreendido.
Necessidade primeira, última, básica, quase sempre insatisfeita, de todos os seres humanos.

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