quarta-feira, 9 de abril de 2014

Cantigas de Escárnio e Maldizer II


Cantigas de escárnio e maldizer II

Ela 

Nunca foi amor, foi um equívoco.
A minha vida é um libreto distribuído pouco mais do que à nascença e eu cumpro-o com o profissionalismo de uma diva no palco do São Carlos. Ensinaram-me a responsabilidade para com o público e eu recebo as rosas de encontro aos pés com a mesma expressão com que acolho as vaias dos dias maus. O público não existe realmente porque a vida é esse intervalo, sentada de encontro ao espelho de um camarim apertado, a sós com a minha falta de maquilhagem. O público não me afeta porque renunciei ao interesse em ser amada. Todo o amor é falso. Como o comprova o teu olhar, hoje vazio.
Por vezes dobro o libreto e, por instantes, reservo-me o direito à existência. Á noite subo aos telhados das cidades e penduro as pernas no vazio com os olhos postos nas janelas das vidas dos outros a absorver-lhes a humanidade. É um direito de exercício balizado pela consciência da sua efemeridade. 
Nunca foi amor, foi um equívoco.
Numa dessas noites de libreto dobrado e pés pendurados no abismo foi a tua janela que eu vi do meu telhado. E a minha vasta coleção de almas catalogadas e arrumadas num álbum de capas de prata argentina pareceu-me miserável diante daquilo que vi dentro de ti. Estava escuro e ao fundo ouvia-se jazz e tu riste-te para mim e foi como se tivesse ficado presa dentro de uma madrugada sem fim embalada numa canção interminável. 
E, no entanto, todos sabíamos da brevidade daquela noite eterna roubada a um programa onde a organização não fez a gentileza de incluir o teu nome. Iludiste a clepsidra em artimanhas de uma Sherazzade de mãos gigantes e pele de mar. Sempre que eu movia o corpo na direção do despertar, tu iniciavas uma nova estória de marinheiros, piratas, tesouros e mulheres perdidas. E eu viciei-me nas tuas estórias e foi como se tudo o que existisse fosse apenas a tua voz a teletransportar-me para um mundo imaginário sem dias, nem estações, nem tédio, nem tristeza, nem público, nem coisas. 
E enquanto tu te inventavas como a mais mágica das personagens das tuas lendas, uma clepsidra avariada e um libreto esquecido atiravam-me à cara uma coleção de almas, num álbum de capas de prata argentina, para sempre incompleta.
Nunca foi amor, foi um equívoco.

2 comentários:

  1. Instrumentos pouco fiáveis, as clepsidras: a areia dos dias por vezes recusa-se a escoar como prometido no manual de instruções. E por isso os dias se prendem, no limbo, inacabados, incompletos...

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