terça-feira, 8 de março de 2011

Dia menos cento e vinte e sete


Confirma-se. A vida no campo é dura e a longevidade das suas populações um mistério de difícil resolução.
A minha primeira noite foi marcada por uma tempestade sobrenatural que abriu frestas na terra por onde, entre outras coisas, se sumiu o falso optimismo que andei a reunir nas últimas semanas.
Os fenómenos naturais perdem toda a naturalidade quando os raios estouram a quinhentos metros de nós e não se vive em apartamentos rodeados por gente e pára-raios. Foi assim que os homens inventaram os deuses e os fantasmas. E só não percebe isso quem não esteve cá ontem. Sozinho. Ter ficado encharcada a caminho de casa e depois não ter aquecimento nem água quente para curar a hipotermia também teve um importante contributo no efeito dramático geral.
Ainda me ocorreu a possibilidade de me queixar a alguém, solução que seguramente me faria sentir menos miserável ou, pelo menos, ter-me-ia dado a confortável sensação de morrer acompanhada. Infelizmente, a Vodafone seguiu o exemplo de deus e abandonou-me. A internet nem se dá ao trabalho de me responder e o telemóvel substituiu as mensagens dos amigos pela enigmática e omnipresente inscrição “sem sinal”.
Foi assim que, prestes a ficar também eu sem sinais, vitais, depois de equacionar e descartar a possibilidade de atravessar a rua debaixo da tempestade para me ir enfiar no carro e aquecer-me no ar condicionado, lá me decidi a enrolar-me no lençol, com uma múmia, à espera que a noite e a tempestade fizessem o favor de me engolir.
Para meu espanto acordei viva. O mesmo não se pode dizer da borboleta, da abelha e das duas joaninhas que, prefiro nem saber como, vieram parar ao meu lava-mãos.
Nem tudo é mau. No campo, todos são simpáticos. Quando abri a porta da rua um sapo do tamanho de um prato de sopa coachou-me os bons dias com um ar animado. Fiquei orgulhosa por ter conseguido calar a tempo o grito de horror que se formou dentro de mim. Mas quando levantei a cabeça e percebi que dez das vinte pessoas que compõem a população estavam estrategicamente sentadas na praça em frente à minha casa, a monitorizar a minha existência, esse orgulho transformou-se em verdadeiro alívio.
Fiquei na dúvida se o dinheiro que os vi trocar entre si estava relacionado com o jogo da bisca ou com apostas da véspera sobre a hora em que eu sairia de casa aos gritos e rumaria a Lisboa.
Seja como for, a minha silenciosa sobrevivência à tempestade da noite passada fez-me ganhar alguns créditos entre a população local. Bateram-me à porta para me avisar que, hoje, no café da povoação, o almoço é galinha e cheira bem.
Eu também gostava de cheirar bem. Infelizmente, fui obrigada a perder a galinha por não reunir as condições mínimas de higiene impostas por um evento social dessa grandeza. A possibilidade de um banho está dependente de suficientes horas de sol para aquecer a água. Atendendo à forma como a natureza me tem acolhido, estava capaz de apostar que vai chover durante muitos e muitos dias.
P.S. Entretanto, a vinte quilómetros de casa consegui encontrar uma loja aberta onde me venderam uma manta. Foi um momento de profunda felicidade só ultrapassável pela possibilidade de conseguir ter som no canal 2.
(os caprichos da falta de rede não me permitem arriscar a revisão do texto. Sejam complacentes com as gralhas deste relato enviado do lado de fora de casa)

10 comentários:

  1. de facto, tentei ligar-te...

    bem, pensa positivo: por exemplo, em todo o dinheiro que vais aforrar sem telemóvel e longe das avenidas da futilidade e da soberba dos hipermercados.
    vai valer um upgrade no pacote das próximas férias. das quais não voltas para aí.

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  2. Sugerir-lhe a releitura de A cidade e as serras será considerado ofensivo?
    Levaria a mal se alterasse a sugestão para Memórias do cárcere?
    Agora a sério. Posso ser útil em alguma coisa? Quer que lhe envie um e-mail para poder gritar por socorro de modo mais privado (que quererei eu dizer com isto...enfim)?
    Foi viver para o Gólgota?
    A sério, sou mesmo capaz de arranjar umas mantas giras, uma apple pie, uma canja de galinha que rescenda, e outras coisas exequíveis!
    (tenho de pensar como se resolve essa coisa do banho quente)
    Maria Helena

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  3. Maria Helena, a última coisa que se pretende é tornar aquele degredo confortável.

    em tempo: escreve como um homem. não é elogio nem reparo: é constatação.

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  4. Escrevo como um homem? Eu, Medusa? Nem estou em mim. Abomino a ideia. Não sou homem nenhum. Como é que um homem escreve?Ou mulher, já agora?

    Ok.Ok. Nada de canjas, nem mantas.

    Maria Helena

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  5. Maria Helena, por favor, deixe-se ficar. e as suas mantas. e mais a canja.

    há já algum tempo estava para lhe dizer.
    mas repito: é só constatação.
    são... coisas. que eu acho que sei.

    e não abomine - eu gostava de escrever como um homem. de vez em quando.

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  6. "para meu espanto, acordei viva"
    ahahahahahahahahah, minha querida!

    por acaso conheço uma pessoa que "acordou" morta... nem imaginas o mau humor...

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  7. Maria Helena,

    A Cidade e as Serras seria apropriadíssimo. E olhe que eu bem precisei dessa canjinha... você é uma boa alma.

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  8. Medusa, tu andaste outra vez descalça na noite,miúda?

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  9. Tempos difíceis dão textos deliciosos! Espera até ouvires as pérolas acerca das maleitas como "ursula" (úlcera), e outras que tais, e não poderes rir ;-)
    Apesar de teres aí muito material de escrita, espero que as coisas amenizem (eles fizeram de propósito, "plantaram" o sapo à porta de casa?)

    p.s.- Também constatei o mesmo que a Medusa mas depois vi a assinatura. Mas eu não sei :)

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  10. Marisa,

    Ainda não me tinha ocorrido a possibilidade de o sapo ter sido plantado. Se não confiar na boa fé desta gente não me resta mais nada. Bem, pelo menos não tinha linhas na boca...

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