sábado, 30 de junho de 2018

Ou talvez os poetas tenham todos a mesma expressão

Foi quando deixou de sorrir que o pude ver: o mesmo espelho quebrado; a carótida dispersa em pedaços; a chuva a submergir a alma; o pássaro que lhe há de ter morrido aos pés; a sombra escura do cão doente; essa estranha, íntima, forma de dor.

sábado, 23 de junho de 2018

Mudança de estação

Por fim, esquecemo-nos todos uns dos outros. Veio esse doce manto tecido a olvido e cobriu-nos a todos: As noites deixaram de ser perturbadas por mensagens nostálgicas de uns; os dias perderam o aborrecimento dos e-mails passivo-agressivos de outros; calaram-se os dolorosos telefonemas superficiais de terceiros; esfumaram-se as evidências históricas dos primeiros; os poetas deixaram de ser violentados a nosso bel prazer; as músicas perderam a sua função de arma de destruição massiva e até os mortos puderam, finalmente, partir.
Estamos todos prontos para o verão.

Falsificar a história

Uma boa alternativa ao homicídio é a falsificação. A maioria dirá que não devemos matar quem nos desilude. Eu concordo, mas apenas por razões práticas, vagamente relacionadas com a vontade de me manter fisicamente livre. Já a falsificação da nossa própria história, é crime que costuma assegurar uma certa impunidade. Ambas são formas relativamente satisfatórias de eliminação de pessoas e a segunda, em extensão, até é uma amputação mais radical.

domingo, 17 de junho de 2018

Ninguém foge ao seu destino

O Romeu e Julieta de Kleist, são Gustav e Toni em “Noivado em S. Domingo”. Toni, mestiça e assassina de brancos refugiados, apaixona-se por Gustav, Suíço e inocente, e tenta salvá-lo. Mas fruto de uma teia de equívocos, Gustav acaba convencido de que ela faz parte de uma conspiração para o matar a si e à sua família e dispara sobre ela. Toni, antes de sucumbir às balas, acusa: —“Ah, não devias ter desconfiado de mim”. Mas como não desconfiar de uma assassina? Como ver nas cordas que nos amarram a receita para a liberdade? Desfeito o equívoco, Gustav suicida-se com um tiro na boca, fazendo com queToni cumpra na perfeição o seu destino: atrair homens para os assassinar de seguida.
Uma lição de cinismo pelo preço de três euros na Feira do Livro.

sábado, 16 de junho de 2018

Vantagem competitiva

Sentei-me na cadeira de balouço onde já não descanso, no degrau junto à porta por onde já não entro, no cume da montanha que já mal recordo, nesses lugares onde desesperei e que guardei para neles desesperar outras tantas vezes, e esperei pacientemente pela tristeza. Caíram uma e várias noites mas a tristeza nunca veio. O melhor que consegui foi uma ligeira sensação de contrariedade. 
Hoje, num verso de uma música, ouvi a explicação: “you can’t break a broken heart”. Não se pode partir um coração partido. Não podes partir um coração partido. E essa impossibilidade, parecendo que não, é uma vantagem competitiva. 

quinta-feira, 14 de junho de 2018

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Homens a evitar

Mas evitai os homens preocupados com a elegância e a beleza 
e que têm o cabelo bem penteado;
o que vos dizem a vós, disseram-no já a mil mulheres;
vai deambulando e não se fixa em sítio algum o seu amor.
Que há de fazer uma mulher, quando o homem é mais instável do que ela
e pode, até, possuir, quem sabe, mais homens? 
Custa-vos acreditar, mas acreditai: Tróia ter-se-ia aguentado,
se tivesse posto em prática os preceitos de Príamo.
Há os que avançam a coberto de uma espécie enganosa de amor 
e, por tais caminhos, são ganhos indecentes que buscam.
E não vos iluda a cabeleira a brilhar, resplandecente, de perfume de nardo,
nem a pinça elegante a apertar as pregas da roupa,
nem vos engane a toga de um tecido finíssimo, nem os anéis,
por mais e mais que tenha nos dedos.
Talvez o mais elegante de entre todos eles 
seja um ladrão e esteja a arder por amor do que trazes vestido.
“Devolve o que é meu!”, gritam, muitas vezes, depois de roubadas, 
as mulheres; (...)

Ovídio, A Arte de Amar, Livros Cotovia 
No século I ac,  assim como hoje. 

Daquela situação de ser a única blogger que não acorda com o som dos passarinhos felizes e bonitos



terça-feira, 12 de junho de 2018

Como o azeite na água benta

Fingi-me civilizada. Cobri-me de rendas e enfeitei as cicatrizes com pérolas roubadas. Usei tiaras das inocentes flores do campo. Sentei-me direita e de pernas juntas. Calei o medo, a raiva e a loucura. Pintei um inteiro portofólio em tons rosa, pêssego e lavanda. Sei os gestos. Consigo reproduzi-los ao som do mais falso sorriso beatífico. Fomos quase felizes. Mas depois a lua mudou. As rendas comicharam-me as veias. As pérolas arrefeceram-me os pés. O pólen entrou-me pelas narinas. Os músculos do pescoço paralisaram. E então, com o metal do veneno já espalhado na boca, obedeci ao chamamento do sangue e revelei-me a bárbara que sou. Creio que ainda tinha o meu falso sorriso colado à cara quando lhe enterrei a espada no peito.
Foi um alívio e uma felicidade. 

Processo de evaporação

Como no verso de Al Berto, “evapora-se o coração do amigo morto”.
Antes não compreendia por que razão não deixavam os vivos os mortos em paz.
Agora sei que não os largamos por ser a última forma de cuidado ao nosso acesso. Por temermos que se os largarmos caiam numa eternidade de olvido. Temos os mortos presos com molas da roupa, a secar nos estendais da memória e se os espanamos, e se não os deixamos cair, é por não os querermos por aí ao “Deus dará”, tristes panos enrolados numa esquina da rua. E quando se lhes evapora o coração assustamo-nos, porque sabemos, sabemos apesar de tudo, que é o nosso o único coração que ainda pode desidratar.

domingo, 10 de junho de 2018

La Traviata

Violeta é uma jovem feliz e desempoeirada que faz grandes festas em casa e tem um Barão que lhe paga as contas. Só quer ser livre e divertir-se. Um dia cai na cantiga de um poeta que lhe promete amor eterno. Então desenvolve um estranho sentido moral e começa a fazer coisas sem nexo como pagar as contas do poeta e acreditar que lhe é inferior. No instante em que acredita que um dia foi uma mulher perdida, perde-se. O poeta humilha-a publicamente e vai para o estrangeiro e Violeta deita-se numa cama para morrer. 
Antes, para que a ninguém falte a redenção, Alfredo regressa e Violeta perdoa-lhe.
Quando ambos gritam “nem homem, nem diabo, meu anjo, vão poder voltar a separar-nos” faltam exatamente quinze dolorosos minutos para Violeta morrer. Se se perderem na contagem, podem contar cinco segundos depois de Violeta dizer “desapareceram os espasmos da dor. Em mim renasce, agita-se um vigor insólito! Mas... eu regresso à vida!! Oh alegria!”.
Não sabemos se o poeta cumpre a promessa do amor eterno, aquele que suplanta a morte, mas posso garantir-vos que há um instante em que tememos que nos obriguem a ficar lá para ver.

Há quanto tempo é nenhum dos responsáveis pelo Teatro Nacional de São Carlos fica três horas e vinte minutos sentado naquelas cadeiras?

sábado, 9 de junho de 2018

A gentileza de não me amares

– Sabe por que razão estou hoje tão contente – perguntou –, tão contente por o ver? Por que gosto tanto de si hoje?
– Diga lá – pedi, e o meu coração batia descompassadamente.
– Gosto de si porque o senhor não se apaixonou por mim. Outro, no seu lugar, importunar-me-ia, insistiria, suspiraria, desfaleceria; o senhor, pelo contrário, é tão gentil...

Fedor Dostoiévski, in, Noites Brancas

A farsa do amado

É talvez abusivo, esse ato involuntário de trazermos as pessoas no coração, arrastando-as por aí, para onde quer que vamos, decidindo que estão junto de nós onde mais nos apetecem, fazendo-as presentes onde não decidiram ir, obrigando-as a partilhar connosco músicas que não ouvem e instantes que não sentem, forçando-as a personagens de uma história que afinal é apenas nossa. 
A tragédia do amante é a farsa do amado.
E bem sei que ninguém pensa nisto mas, na verdade, transportar pessoas no coração é uma terrível falta de ética. 

A lei do retorno


quinta-feira, 7 de junho de 2018

Traças

Há uma traça no ninho de borboletas. Um bater de asas desenfreado, nervoso. Os tecidos do estômago consumidos na avidez do verme. A picada inconfundível de uma pata que se estica e demora a encolher-se. O sintoma não me é estranho. Conhecemo-nos dos espelhos altos. Dos finais de tarde de chuva morrinha. Das notas agudas do piano. É o princípio do fim.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Um coração como o dele

UM CORAÇÃO COMO O MEU

Leio que Dostoiévski, quando se viu abandonado pela amante Apollinaria Souslova, lhe caiu aos pés e disse «Nunca mais encontrarás um coração como o meu.» Quase me cai aos pés o livro em que leio isto. Usei uma vez uma frase quase assim, nada sofistificada, lamechas, feita pânico e súplica. E fui atacado como nunca tinha sido. Toda a gente me chamou terrorista e mentiroso. Mas eu nunca disse nada tão pacífico na vida. E nunca disse nada tão verdadeiro. Disse e digo: «Nunca mais encontrarás um coração como o meu.» (e agora cito Dostoiévski).


Pedro Mexia, in, Estado Civil, Tinta da China 

Património é património

Tenho mais estima pelo erro do que pelo acerto. Ao segundo considero-o sempre filho do acaso e só o primeiro sou capaz de perfilhar. Além disso, conheço-o melhor. Temos uma relação íntima. Quando me perguntaram qual dos meus erros gostaria de ver emendado - e são tantos - descobri-me incapaz de me livrar de um único que fosse. Não é que tenha orgulho nos erros. É que são meus.