segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Kierkegaard, o cão Pirata

Kierkegaard, o cão Pirata, está velho.
Era um bebé de seis semanas quando o ofereci a mim própria de presente de Natal e o levei para todo o lado dentro dos casacos de inverno, como se fosse uma exarpe fancy. Depois cresceu e deixou de me caber no colo. Quando decidi ir para Pirata, fiz uma grande fogueira no pátio e queimei todos os livros, todos os vestidos e todos os sapatos. Quando embarquei no Aleph e soltei amarras na direção do crime, da liberdade e das Caraíbas, o único acessório que levei comigo foi kierkegaard e a sua coleira de marca. E uma chaise long de design. E alguns cristais. E um talher de prata. E uma toalha bordada. E umas iCenas, algumas das quais com as versões digitais dos livros que queimei. E os shampoos da Kiel’s. E um secador de cabelo. E umas sombras da Chanel e aquele verniz da moça do Pulp Fiction. ... mas voltando ao ponto, o único acessório que levei comigo - com exceção de todos os outros - foi Kierkegaard, o cão Pirata. Vivemos juntos a experiência do crime, do mar, da liberdade. Quando pelo amor traí o mar - as pessoas dizem escolher, mas todas as escolhas sérias são traições - abandonei o Aleph com a roupa do corpo e Kierkegaard, o cão Pirata, pela trela de marca. 
O cão foi o que primeiro se habituou à vida na terra. Ainda eu suspirava pelo sabor da lâmina da espada e pelo cheiro do sangue salgado, já o cão se aburguesara a jardins de magnólias, sofás finos e mantas de pura lã virgem. Vendeu-se por biscoitos gourmet e esqueceu o cesto da gávea nos pés do novo dono, a quem quis, à semelhança da sua dona, como nunca antes tinha querido a ninguém.
Kierkegaard, o cão Pirata, está velho. Dorme a maior parte do dia, rendeu-se à DogTv, só aceita comer patê gourmet servido em pratos dourados, ergue as orelhas ao assobio do seu dono do coração e quando o sonho o abana, eu sei, é nos macios relvados em que esfrega os costados que está a pensar. 
Kierkegaard, o cão Pirata, essa última testemunha da minha vida de liberdade e aventura já esqueceu os tempos em que mordia as ondas. 
Não o censuro. O sabor do Lindt de laranja também já me fez esquecer o gosto da espada nos dentes. 

7 comentários:

  1. Quando quiseres, posso mandar te a Milu para fazer companhia ao burguês do teu cão ;)

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    1. Nem pensar. Essa aranha beta custou-me uma fortuna em aulas de violino...

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    2. Forreta! Vê se mesmo que és pirata ☠️

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  2. Não posso deixar de simpatizar com o seu cão pequeno, Capitã...

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    1. Todos sabemos que Kierkegaard é enorme... considerando a raça...

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  3. 'Entrei" aqui através do tio Salgado, gostei MUITO. Obrigada pela partilha
    Vw

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  4. Recordei o Cão das Lágrimas, do Ensaio sobre a Cegueira:

    “… A mulher do médico vai lendo os letreiros das ruas, lembra-se de uns, de outros não, e chega um momento em que compreende que se desorientou e perdeu. Não há dúvida, está perdida. Deu uma volta, deu outra, já não reconhece nem a ruas nem os nomes delas, então, desesperada, deixou-se cair no chão sujíssimo, empapado de lama negra, e, vazia de forças, de todas as forças, desatou a chorar. Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara , talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar pratos. A mulher toca-lhe na cabeça , passa-lhe a mão pelo lombo encharcado , e o resto das lágrimas chora-as abraçada a ele.”

    Eu, sou mais gatos.

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