sexta-feira, 6 de maio de 2016

Desquecer

Esqueci-o inúmeras vezes pois o problema nunca foi o esquecimento. Começo sempre por esmorecer-lhe os contornos do rosto. O meu processo de esquecimento é uma miopia progressiva. Mas há uma ligeira imperfeição, um espaço demasiado grande entre dois dentes, uma marca de varicela na sobrancelha direita, um desnível mínimo na cana do nariz, esses defeitos que o tornam humano, que são a estrutura da minha memória. 
Então, uma manhã, diante de uma chávena de café, a mesa posta na varanda, uma gaivota que se afasta, um cão que a persegue, o gesto de soltar os cabelos de dentro da camisa, diante de uma dessas ninharias, assalta-me esse outro nada que é uma das imperfeições do seu rosto. E a partir desse detalhe, desquecendo-o, reconstruo-lhe o olhar distraído, um sorriso que nasce do fundo do estômago, o andar balançado, a imagem das suas omoplatas a erguer-se de uma multidão anónima, a minha mão muito pequena dentro da sua, uma voz sussurrada.
Esqueci-o inúmeras vezes pois o problema nunca foi o esquecimento. 

2 comentários:

  1. "diluído no esquecimento reconstrói-se o lugar
    por onde regressámos ao tempo das manhãs felizes"

    Al Berto/Meu único amigo

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