segunda-feira, 9 de março de 2015

As minhas veias



A abstração é a mãe de ilimitados equívocos. 
Já fui amada da maneira como se ama a Gioconda; a andorinha que anuncia a chegada da primavera; uma das Tágides; a Salomé do Klimt. Amada na dimensão de boneca de desenho animado japonês, daquelas que saltam e ficam paradas no ar durante vários minutos, em posição de guerreira e com cada fio de cabelo devolvido ao seu lugar de origem. 
Não gostei nada. O embaraço do equívoco é sempre superior à lisonja do sentimento. 
Sou mal agradecida. Porém, rica. Tenho uma caixa de madeira onde guardo a macabra coleção feita dos restos dos amores abstratos. Cartas, poemas, duas ou três fotografias, metade de um bilhete de um concerto, uma pulseira com contas turquesa, a própria da boneca japonesa. E até um caderno de capas pretas que é a prova que retenho dos malefícios da ideia abstrata de mim na criação da má poesia. A boa, que também devo ter inspirado, nunca tive a tentação de guardar. 
Sou uma péssima musa. Entregam-me a bandeja prateada dos sonhos e eu deposito nela as minhas veias. Abertas. 
Desfaço o equívoco. 
Desfazem o amor.
Suponho que as musas nem sequer precisem de ser abraçadas.


5 comentários:

  1. Mas é nas veias que corre o sangue infectado do amor. Há lá dádiva maior do que abri-las na bandeja dos sonhos?

    Beijo, Cuca. :)

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    1. Ah Maria,
      Mas as pessoas detestam que lhes sujem a bandeja de prata.
      :)

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  2. Excelente cara Cuca.
    (refiro-me ao texto, não àquilo que ele implica)

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  3. Até podes ser uma péssima musa, mas és excelente a escrever, Cuca.
    (e acho que as musas precisam de ser abraçadas, sim, senão como é que sabem que são musas?)

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