sexta-feira, 20 de julho de 2012

Diálogos com Deus

(Cuca entra na cozinha com uma rede de apanhar borboletas e encontra Deus sentado num banco com os cotovelos em cima da mesa)

– olha, olha…quem se veio prostrar aqui na minha cozinha sem ser convidado. Finalmente vieste para me levar para junto daqueles que me amaram?

– deves pensar que sou algum escort boy, tu.

- é! Tive uma catequese confusa. Eu. Se não vens para me levar, desaparece. Quero almoçar em paz. Não gosto de partilhar a mesa quando me sinto infeliz.

- és tão drama queen… e quem são esses que presumes que te amaram? A criança e o poeta? Dois doidos…

- a tua falta de ética conhece novos limites com essa coisa de agora dizeres mal dos mortos. Vai-te, criatura irritante. Caaaasa!

- minha filha, eis o triplo aguilhão da consciência, a víbora que morde o próprio âmago do coração dos desgraçados no inferno, de tal modo que, cheios de fúria infernal, eles se amaldiçoam pela sua estultícia e amaldiçoam os companheiros perversos que os fizeram caira nesta desgraça e amaldiçoam os demónios que os tentaram em vida e agora troçam deles e os torturam na eternidade, e chegam até a insultar e amaldiçoar o Ente Supremo cuja bondade e paciência desprezaram e desconsideraram, mas a cuja justiça e poder não se conseguem furtar…

- ahh… vigarista! Tu não tens limites nas tuas manhas e aldrabices! Isso é uma citação de Joyce no Retrato do Artista quando Jovem, Edição Relógio D’ agua, página 131! Achavas que eu não iria perceber o logro? Pensas que sou alguma ignorante?

(Deus encolhe os ombros)

- pensei que ficasses mais sensível com argumentos literários…

(Cuca vira as costas a Deus para tentar caçar uma mariposa que passa por ali)

- vermes com asas coloridas!

- vim por achar que esta manhã precisavas de mim.

- pois enganaste-te. Até na omnisciência te sobrevalorizam. Que desgraça de fraude.

- podes sentar-te no meu colo que eu não conto a ninguém.

- és fraca consolação para o colo de onde insistes em arrancar-me e que é único onde posso descansar a alma. Devolve-mo ou desaparece.

- Cuca, já te explicámos tudo sobre o capítulo das provações. O amor dos homens requer tempo e espaço.

- cala-te com essa ladainha incompreensível, para mais em plural majestático, e põe-te a andar imediatamente. De caminho, deixa a porta aberta para ver se as vis borboletas saem todas daqui de dentro.

(Deus levanta-se com ar desconsolado e aproxima-se da porta)

- já. Sai daqui. (e depois para as borboletas) vocês também, ouviram? Vermes com asas coloridas. Vermes com asas coloridas. Vermos com asas coloridas.

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