sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Renascer na Praia

Choveu e choveu e choveu. E os campos que afastam a laguna ficaram alagados e as ruas de asfalto são rios onde dois ou três carros esquecidos navegam ao sabor da corrente. O mar rugiu toda a escura noite, como se quisesse vomitar um mal dos homens que se lhe pegou. Dizem que entrou pelas dunas e foi rente às casas roubar paz e pão. Dormi perturbada pela fúria da natureza e por uma vértebra retorcida. Mas este é um promontório seguro. Daqui vê-se a miséria e a fome e a destruição e a doença e o medo, sem que nada se veja de fora, sem que nada nos venha de fora. 
Quando acordei reguei os meus girassóis e pensei no infinito tempo que demorou fazer pela mão esta jarra caleidoscópio que ja sobreviveu a quatro gerações.
Depois comi tostas com queijo chedar e enquanto ouvia Einaudi na coluna B&O e via a chuva que continua a cair pensei que as praias, são mesmo, mesmo, mesmo, um péssimo sítio para morrer. 

Diário

esta manhã trouxe da vila três girassóis
e afoguei-os 
numa jarra de vidro centenária.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

A minha nova terra II



A minha nova terra

Cansado das minhas lamúrias de refugiada; farto de me ver perseguir lagartas no jardim de magnólias; incrédulo da imagem de um búzio constantemente encostado ao meu ouvido e atónito com a explicação óbvia de que é essencial ouvir o mar para reconciliar os batimentos do coração; assustado com a claustrofobia que nas sombras da noite começou a devorar os dedos dos meus pés, Capitão Strut, deus dos ventos, contador de estórias, ex corsário, construtor de pontes e criatura mais paciente que a literatura já inventou, finalmente, acedeu a mudar-me de terra. 
A minha nova terra é um colorido porto de pescadores com três tascas, uma igreja, uma loja onde se compram louças, vestidos e plásticos e, claro, o mercado do peixe.
Da varanda da sala, habitada pelas mais temerárias gaivotas, vejo os barcos que partem leves com an aurora e regressam de redes pesadas, lá para o meio da tarde, mesmo a tempo do vento norte.
Aqui todos obedecem à tirania do vento, que pode, ou não, permitir-nos abrir as portadas de casa sem morrer esmagados de encontro à parede, acender a lareira sem correr o risco de sofrermos uma intoxicação por fumo e até deixar-nos passear na praia sem ficarmos soterrados em poucos minutos.
Nos dias em que o vento não fecha o mundo costuma cair sobre nós um nevoeiro tão intenso que tornaria impossível a um forasteiro encontrar este sítio, mesmo que nisso tivesse algum duvidoso interesse. Até os bons velhos indígenas podem não raro ser vistos, com uma candeia numa mão e a outra estendida, a apalpar as paredes das casas numa tentativa nem sempre bem sucedida de encontrar a cama..
Às vezes o Capitão Strut regressa à civilização por uns dias e fico aqui sozinha com Coyota, a cadela, a imaginá-lo no São Carlos, ou nos restaurantes da moda da capital, a conviver com pessoas que nem sequer sabem amanhar enguias ou fazer um bom sashimi de tainha do mar.
Depois de chegar a esta nova terra, logo que  a maresia oxigenou o meu envenenado sangue, parti todos os televisores e desencaixotei os livros de poesia. 

Não tenho saudades nenhumas de Lisboa. 


 


Os Viajantes não têm de entregar já as suas comissões

SALDO

 À venda o que os judeus não venderam, o que nobreza e crime não gozaram, o que o amor maldito e a probidade infernal das massas ignoraram; o que nem tempo nem ciência têm de reconhecer:
As vozes reconstituídas; o despertar fraterno de todas as energias corais e orquestrais e suas aplicações instantâneas; a ocasião, única, de distender os sentidos!
À venda os corpos sem preço, sem distinção de raça, mundo, sexo, descendência! A riqueza irrompe em cada lote! Saldo de diamantes sem controlo!
À venda a anarquia para as massas; a satisfação irreprimível para os amadores superiores; a paz atroz para os fiéis e para os amantes! 
À venda as casas e as migrações, os sports, as maravilhas e os conforts perfeitos, e o ruído, o movimento e o futuro que fazem! 
À venda as aplicações de cálculos e os saltos de harmonia inauditos. Regras e achados nunca suspeitados, entrega imediata.
Ímpeto infinito e insensato de esplendores invisíveis, de delícias insensíveis, e seus segredos enlouquecedores para casa vicio, e a sua aterradora alegria para a multidão.
À venda os corpos, as vozes, a imensa opulência inquestionable, o que nunca será vencido! Ainda temos de tudo! Os viajantes não têm de entregar já as suas comissões. 


Jean-Arthur Rimbau

Iluminações - Uma Ceveja no Inferno, tradução de Mário Cesariny. Assírio & Alvim

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Piratas mortas não contam estórias

Naquela primavera, sentados no cume de um monte, com a areia do deserto na boca e o sol a afundar-se no horizonte, Tagik, o berbere contador de estórias, através dos três ou quatro dentes que lhe restam, cuspiu um vaticínio horrível: chegaria o amor.

Como na morte de Samarcanda, como nos grandes espelhos atrás das costas, como nos pesadelos intermináveis dos mosquitos dos trópicos, foi casualmente encontrar-me no lugar onde estava melhor escondida.

Chegou o amor e tinha os seus olhos.

Por uma vez, experimentei pousar-lhe o sabre nas mãos ao invés de o arrecadar dentro do seu peito. 

Vendi a pólvora e troquei o mar por um jardim de magnólias. Perdi há muito os livros da contabilidade. Desinteressa-me o valor do inevitável.

Nunca me pediu nada.

Nunca me perguntou nada. 

Aperfeiçoou a manha de sherazaade, mantendo-me presa na primeira estória enquanto me guarda a mão direita. 

Não voltei ao deserto. Não posso mais voltar ao deserto.



domingo, 9 de fevereiro de 2025

Ou onda

e não havia…
altar…
de que estivéssemos ausentes; 

nem bosque…dança
…som… 

Safo, Poesia Grega, Frederico Lourenço, Quetzal

As Rosas da Piéria

 Morta jazeras e de ti não haverá jamais memória

nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas

da Piéria, mas invisível também na mansão de Hades

andarás para trás e para a frente no meio dos mortos sombrios. 


Safo, Poesia Grega, Frederico Lourenço, Quetzal

Ensaio sobre o ar que não respiro

Fui artista de circo.

Fiz equilibrismo no vértice dos diamantes. Mergulhei em plateias de feras lançando-me das faces de topázios. Trepei por lenços de seda aos telhados de uma certa Lisboa. Em noites sem lua pendurada nas árvores do sul. decorei constelações inteiras.

Fui pirata

Naveguei as vagas que ficam para lá da bruma. Rasguei um ou outro peito 

 Aprendi a amar as noites sem lua.