sábado, 7 de novembro de 2015

Quanto do que somos é nosso

António sonhou que já não cabia na cama de grades de ferro pintado de branco da sua infância. Parecia-lhe que a cabeça era empurrada de encontro às grades pela dimensão de um corpo desmesurado. Quando abriu os olhos na noite não encontrou o azul das paredes do quarto de criança. Nenhuma nuvem sobre o seu lado direito. Percebeu que estava ligado a uma máquina de desfazer nuvens pelos fios que lhe saiam do nariz.
Uma semana depois saiu do hospital e entrou numa casa que juraria nunca ter visto. Uma mulher e uma filha seguravam-lhe as mãos e olhavam-no, expectatantes da epifania do reconhecimento. A peça que dá sentido ao puzzle estava escondida em qualquer outro canto do seu passado.
Ficou sentado numa poltrona de pele puída, a sua, garantiam-lhe as duas desconhecidas, perdido nas fotografias  que lhe impingiam, sempre com o mesmo ar de desconfiança. Mas não podia ser ele aquele que pousava em frente da secretária metálica de um gabinete triste com uma parede decrépita enfeitada por uma reprodução de um ramo de rosas. E também não podia ser ele, mascarado de noivo, ao lado daquela mulher suplicante, os dois encerrados num horrível por-do-sol dos anos oitenta. Menos ainda o homem estagnado em frente a um jardim madrileno, olhar assustado, garota erguida nos braços, a antiga noiva mascarada de esposa.
Lembrava-se do quarto da sua infância. De vinhas a perder de vista. De um rio onde pescava trutas com os amigos. Da voz da mãe a ecoar pelo crepúsculo quando se esquecia de regressar a casa. De uma bicicleta encarnada e de nela descer o monte de braços abertos e pernas esticadas. 
Lembrava-se de si, percebeu com horror, apenas até ao exato ponto em que deixou de escolher. Tudo o que o destino atropelou em si, perdera-se naquela mesa de operações onde lhe abriram o cérebro. 
António estava aprisionado numa existência que, sabia-o agora, jamais poderia ter sido escolhida por si.

6 comentários:

  1. Cuca, isto é tudo muito bom. É só o que consigo escrever. Acho que de vez em quando vou começar a passar por aqui... ah, li o texto como se estivesse como muita sede e não me atrevesse a desperdiçar nem uma gota sequer.

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  2. infinitamente pouco, a tender pra zero...

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    1. Felizmente há uma espécie de conspiração cósmica que faz com que raramente tenhamos consciência disso.

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  3. andei a remoer este texto. ficou qualquer coisa colada. acho que é o sabor amargo de um dia ter acordado e não reconhecer o raio de vida em que estava metida.

    mas adorei o post, claro. que isto do que é bom não é só o que nos faz soltar fast-gargalhadas. por vezes, basta olhar para trás e sorrir pela tranquilidade do sítio onde se está hoje.

    ***

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