segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A viúva da liberdade

Não poupa na quantidade dos cravos. Todos os sábados enche três jarras de cravos vermelhos depois de em lentidão concentrada de nano ciência limpar o mármore da campa. O semblante, diz quem vê, é dessa tristeza antiga que não trai nota de melancolia. O processo consome-lhe uma invariável meia hora semanal. Já não se lembra, talvez nunca se tenha recordado, da visão do tecto da cozinha a partir do chão quando ele a derrubava a murro e pontapé nas noites em que uma desobediência no trabalho ou uma quezília na taberna, tanto fazia, lhe tornavam insuportável  a nódoa de gordura no fogão, o excesso ou falta de sal na sopa, a ausência do filho adolescente ou, na falta de qualquer uma destas coisas, o reacender do velho rastilho já apagado por uma semana menos pior.
Chorou-o no funeral mas apenas porque as vizinhas são a mais eficiente instituição de controlo moral de qualquer sistema reacionário. Em privado, nem uma lágrima.
No dia seguinte, coberta de luto, foi a uma loja da cidade e mandou entregar em casa a televisão que ele nunca autorizou que a família tivesse. Por cima, para que ele soubesse, pendurou-lhe o retrato. Nunca mais falou sobre ele. Nunca mais quis um homem. Criou o filho sozinha com dificuldades de viúva pobre. A magra pensão de viuvez nem sempre garante a carne sobre a mesa. Mas o que não pode faltar são os cravos vermelhos. Três jarras cheias.
Como bom anticomunista o falecido odiava cravos.
Uma pobre viúva tem o inalienável direito à sua pequena vingança.

3 comentários:

  1. Olá Pirata, não sei quanto de verídico terá esta história mas tem algo. Três jarras de cravos vermelhos... talvez uma por ela, outra pelo filho adolescente e talvez outra pela criança que matou a murro e pontapé ainda no ventre dela? Não há cravos vermelhos no mundo que cheguem para comemorar tal libertação.

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    1. Querido anónimo mauzão, a ideia é tão boa que precisei de reunir os restos da honestidade intelectual para admitir que não me acorreu isso.
      Consegue ser mais dramático do que eu, caramba...

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