domingo, 14 de abril de 2013

Fugir de casa 2



O princípio do fim da fuga foi deixar que as minhas pessoas, esse bando de burgueses inqualificáveis que tem por mim a estima que se desenvolve por uma máquina de fazer dinheiro falso, percebesse que a minha estadia em Lisboa não se devia a uma licença sabática, uma sucessão de feriados locais ou a razões de segurança. Quando lhes disse que fugi mandaram-me regressar imediatamente para a minha estância balnear e nem sequer me disseram que fizesse as malas porque ao quarto dia lá perceberam que o facto de me verem sempre com a mesma roupa não se devia a uma obsessão com um vestido novo. A trágica combinação com os ténis também pode não ter ajudado. Ainda lhes disse que estava a pensar tornar-me missionária em África, mas riram-se de mim, perguntaram-me que livro ando a ler e quando lhes atirei com a moby dick, pensaram que um livro infantil sobre baleiazinhas simpáticas não pode produzir estes efeitos e perguntaram-me, com a mesma disposição de encontrar culpados, então o que é que ando a escrever. Desesperada, tentei um argumento que pudessem entender e disse-lhes que era impossível voltar porque comecei a assistir a uma série interessante na fox e não tenho tv cabo aqui na estância balnear. Isto acalmou-os um pouco, mas só durante o tempo suficiente para resolverem o problema oferecendo-me uma assinatura da meo. O existencialismo não é genético mas o pragmatismo é. 
Usaram as palavras responsabilidade e dever, coisas que não imagino o que sejam porque me parece, sinceramente, que o único dever que tenho é ser missionária em África, onde creio que com o meu curriculum posso revolucionar pelo menos uma tribo e transformá-los em pessoas com vidas de elevação espiritual semelhante à minha, levando-os assim a questionarem-se permanentemente até à insatisfacao total, a quererem desistir de tudo e, quem sabe, partirem para a Europa para montarem um franchising de venda de mandioca que lhes permita ganhar o suficiente para pagarem um bom psiquiatra. 
Depois usaram a palavra cobardia e penso que foi essa, e talvez as obras no andar de cima da minha casa de Lisboa, que me trouxeram de volta.
Seja como for, a fuga terminou.
Cheguei ao final da tarde e percebi que aqui já é verão o que pode significar que fiquei mais tempo em Lisboa do que me recordo. Aquela gente na praia a comer gelados e a transportar-se em bóias, aquele cheiro a protector solar, o parque de estacionamento cheio e a enervante música chill out em todos os cantos, fizeram-me perceber que ainda não estou pronta para mais um verão. O último foi ontem. Tenho as marcas na pele para o provar. Não estou disposta a acreditar que entre o nada que mudou na minha alma e esta gente a jogar futebol na praia tenha passado um ano. Preciso de três invernos que arranquem de mim a memória do ultimo verão antes de viver o próximo. 
Confesso que a primeira reacção que tive foi pegar nas roupas de neve e voltar a fugir, desta vez para longe de pessoas que saibam usar as palavras certas para me devolver aos sítios onde não quero estar. Mas depois percebi que tinha pouco combustível no carro e que as bombas com gasolineiro já estavam fechadas àquela hora.
Mesmo assim, para preservar alguma dignidade no regresso, mantive a rebeldia possível. Fiz de conta que não vi os quilos de papéis inúteis na minha secretária e passei o final dia a investigar tribos em África com ar de merecerem que vá para lá espalhar a miséria humana. 
Pelo menos, o cão parece feliz por ter voltado a casa. 

2 comentários:

  1. "Aquela gente na praia a comer gelados e a transportar-se em bóias".

    estava lendo e saiu-me

    "Aquela gente na praia a comer gelados e a transformar-se em bóias"

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