Já se passou quase um ano
desde o dia em que morreste. Já quase ninguém conta os dias que passaram e, depois de umas semanas em que estiveste presente em todo o lado, também já
quase todos se esqueceram de ti. Quando o mundo te devolveu o desprezo e voltou
a organizar-se em torno de si próprio eu fiquei aliviada. Foi como se
finalmente ficássemos os dois sozinhos sentados no sofá da sala sem nos
tocarmos e tu me perguntasses com os ombros, daquela maneira como perguntavas
com os ombros, como é que vai ser agora e eu te respondesse com as mãos,
daquela maneira como te respondia com as mãos, que logo se verá como é que vai
ser. Quando os outros se esqueceram de ti eu consegui convencer-me que precisas
da minha memória para continuar a existir e percebi que os nossos mortos só são
nossos quando deixam de ser os mortos de todos os outros.
Como morto, esperava mais de ti.
Não pensei que a tua inquietude irritante se transformasse neste
nada. Sonhei com exuberantes aparições a horas tardias e em dias em que a casa
estivesse cheia de visitas, pelo simples prazer de me envergonhares em público.
Juraria que, quanto mais não fosse em ambiente intimista, aparecerias para me
sussurrar ao ouvido poemas absurdos em que a palavra papoila surgisse repetida
e em entoação mais forte. Julguei que me enviarias bilhetes anónimos com frases
codificadas em linguagem do além. Em vez disso, transformaste-te num morto ausente,
incomunicável, desaparecido. Um morto convencional que não faz outra coisa a
não ser estar morto.
Mais de meio ano depois, consegui
apagar o teu número do meu telemóvel mas tive o cuidado de o decorar primeiro,
como se fosse mais prudente guardá-lo na cabeça para te ligar quando eu própria
morrer. Ainda me ri um bocadinho com a ideia de os mortos a chegarem ao sítio
para onde se vai quando se morre, preocupados em encontrar rapidamente um
telefone público para se apressarem a reestabelecer os seus contactos terrenos.
Foi, acho, a última vez que me ri contigo. Pelo sim, pelo não, mantive-te no
skype.
A maneira como me passaste a
ignorar depois de morreres não tem contribuído para a melhoria das nossas
relações. Só um desalmado poderia assistir em silêncio ao espetáculo erroneo-deprimente que tem sido o meu último ano. Continuo incrivelmente zangada contigo e pondero a possibilidade de
nem sequer te vir a perdoar. Morrer, foi a coisa mais grave que tu me fizeste.
E isso não se esquece.