domingo, 5 de fevereiro de 2012

Metamorfoses

Havia uma casa minúscula com vista para Monsanto. Uma varanda acanhada com cadeiras desiguais onde se sentavam a beber vinho tinto barato. Copos de vidro fosco também desaparceirados. Como eles. O barulho dos carros lá em baixo. Nos dias de chuva, ela sentada na cadeira de bambu da sala. Descalça. Ele no chão de alcatifa manchado. A ensaiar acordes numa viola adolescente e a olhá-la à espera de aprovação. Ela a tentar mentir-lhe sobre a falta de talento. Ele a abandonar a viola e a rasgar o silêncio com poesia dita com raiva. Uma gargalhada despropositada a proibir a nostalgia do instante. Os lençóis amarelos na cama demasiado grande para dois. Teatro de sombras ao luar com enredos de pulp fiction. Demasiadas pulseiras sobre um peito tão nu. O sono que o levava a ele a deixava a ela presa numa interminável insónia. O elevador que chiava entre o terceiro e o quarto piso onde toda a cidade parecia morar. O contínuo ruído do rádio comprado por ele nos chineses. Mal sintonizado, a impor a irritante intermitência da música ao sono dela para que ele pudesse dormir embalado no caos. De manhã o sol entrava pela janela sem cortinas e magoava-lhes os olhos. Também esse desconforto o divertia. Ela tinha sempre pressa. Já estava ausente quando ele lhe puxava uma madeixa de cabelo e a ficava a enrolar em silêncio. Como se lhe pertencesse. Já tinha partido quando ele lhe prometia ao ouvido que haveriam de ficar sempre juntos. Mas voltava todas as noites para fingir que dormia. Sem saber como dizer-lhe ser incapaz dormir numa vida em que a falta de harmonia geométrica lhe insultasse os sentidos.
Havia uma casa minúscula com vista para Monsanto. Duas crianças deitavam-se numa cama grande com lençóis amarelos. Ele dizia-lhe que se fosse flor seria papoila. E ela imaginava-o a tingir de vermelho um campo de girassóis. Ele dizia-lhe que se fosse animal seria pássaro. E ela pressentia-se a gaiola de encontro à qual as asas dele acabariam por mirrar. Ele dizia-lhe que se fosse homem seria criança. E ela sabia que tinha pressa de crescer.
Uma manhã ele esqueceu-se de lhe prometer que ficariam sempre juntos. À noite, ela lembrou-se que precisava mesmo era de dormir.
Sem grades, ele foi papoila, pássaro e criança numa existência plena de sons e desassossego.
Sem música, ela foi um corpo adormecido, aprisionado dentro das harmónicas grades dos adultos.



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