terça-feira, 17 de agosto de 2010

Pesadelo de uma noite de verão


Logo que me aproximo da varanda do restaurante vejo-o lá em baixo, no bar. A dançar no meio de centenas de pessoas. Acho que ainda tenho os olhos treinados para o encontrar nas festas. Tem vestida uma camisa preta de linho que custou quase um salário mínimo e só pode ser lavada à mão. Sei estas coisas sobre ele. Com a mesma naturalidade com que sei os nove sítios do corpo onde tem cicatrizes. Ou o número dos casacos que usa. Ou o número das camisas. Ou que os ténis Nike são dois números acima do número dos sapatos. Um manancial de informação que não me serve para nada. Sei, pela maneira como distraidamente toca no cotovelo, que irá chover amanhã. Sei, porque estava lá quando ele fez aquela lesão que piora com a humidade. Acho que se pensar um pouco ainda sei de cor o número do passaporte dele. Claro que sei. É o número a seguir ao meu.
Da mesma varanda vejo-te a ti, ao lado dele. Tens um vestido de seda que foste comprar à pressa para a noite de hoje. É demasiado parecido com os meus para teres sido tu a escolhê-lo. Calças uns sapatos impossíveis que ele te comprou. Levou-te à loja, pediu o teu número à empregada, como se nem sequer lá estivesses. Experimentou-tos sem olhar para ti e deu-te o saco depois de saírem da loja. Também sei muitas outras coisas sobre ti. Sei, por exemplo, em que cabeleireiro te estragaram o teu tom de mel natural, com essas madeixas louras que te fazem parecer mais velha. Sei que preferias usar uns ténis. Ter ficado em casa a beber cerveja com as tuas amigas. Aquelas duas que ainda te restam. Agora que a prioridade da tua vida é viver a vida dele. Sei em que carro chegaram. E que ele parou à porta e entregou-o para que alguém o arrumasse. Sei quanto deu de gorjeta. Sei de que piadas não te riste no chatíssimo jantar de dez pessoas que antecedeu a decisão de vir dançar para este sítio. Decisão que, obviamente, não passou por ti.
Sei porque tens uma sombra sobre o teu rosto perfeito. Sei que sabes que foste enganada por ele na noite de ontem. E sabes que serás enganada por ele na próxima semana. Que já lhe procuraste os registos do telemóvel. Que já ligaste para números suspeitos. Que te atendeu uma voz ensonada de mulher. Sei a que te souberam as lágrimas que choraste na cama. A cama escolhida por mim. Num quarto azul. Um azul celeste que demorou três dias e dois pintores a conseguir. Não sei o teu número de passaporte. Nem sequer sei o teu apelido. Mas basta-me ver o movimento ansioso do teu corpo de modelo, ao lado dele, para perceber que já te explicaram que se não estás bem deves mudar-te. Que já te estenderam uma lista de prioridades da qual não fazes parte. Que já percebeste que, logo que a tua beleza foi banalizada, passaste a valer menos que a estátua da entrada da sala. Que também foi escolhida por mim.
Se só o querias a ele, nunca deverias ter aceitado a minha vida.
Estou pendurada na varanda do restaurante e tenho atrás de mim o meu futuro. E à minha frente o meu passado. E é estranho olhar para ti, ainda tão nova e já tão triste, saber estas coisas todas, e não perceber exactamente de quem é que tenho pena.

6 comentários:

  1. "Estou pendurada na varanda do restaurante e tenho atrás de mim o meu futuro. E à minha frente o meu passado."
    Cuca,
    Desculpa a intromissão, mas não podia deixar de fazer um comentário a um texto tão desasossegadamente desiludido.
    Vira as costas ao passado que claramente não te traz nada de bom, e abraça o teu futuro com um sorriso... o pior já passou. Não fiques com uma mão cheia de nada, nem ocupes a tua linda cabecinha com memórias datas e números que não te pertencem.
    Limpa o disco rígido... Senão terás sempre esse vírus a lentificar-te (Meu Deus... nem sei se esta palavra existe - pretendia dizer tornar-te mais lenta), a tolher-te e a não deixar que vivas a tua vida.
    Sê feliz com o futuro. E que as próximas noites sejam de sonho!

    Com carinho.
    C.

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  2. C, há vírus que precisam de lentos processos de eliminação.
    Maria, thanks.

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