Num daqueles fins de tarde de chuva morrinha que se cola aos vidros, uniu-os um poeta. E o que os poetas unem, sob conjugações astrais abençoadas pela chuva morrinha que se cola aos vidros, nem os deuses separam.
Nunca equacionaram ato menos dramático do que a fuga. Partilhavam um desprezo profundo pelas soluções prosaicas e uma paixão doentia pelos clichés românticos. Fugir afigurou-se-lhes o caminho imperativo e inquestionável que manteria incólume um certo sentido de honra embrulhado nas rendas de outros séculos.
Debruçados sobre o velho mapa mundi que desdobravam no chão das salas, fugiram inúmeras vezes.
Numa manhã de junho, vestidos de riscas azuis, partiram num veleiro, carregados de arcas de madeira de mogno, onde transportaram livros e peças do serviço rosenthal. Levaram uma tripulação e um criado que todas as tardes lhes servia, às cinco em ponto, o chá de gengibre acompanhado por scones com canela.
Mas cedo se fartaram dos caprichos do mar e da presença dos outros, que os distraíam das duas únicas atividades que consideravam dignas: adorarem-se um ao outro e perseguirem o projeto de ler todas as coisas que conseguissem.
Fugiram outra vez. Vestidos do melhor linho branco, desprovidos de porcelanas e de criado, desembarcaram numa das praias da Austrália. Assenhoriaram-se de uma vivenda em frente ao mar e testemunharam um uníssono e contínuo por-do-sol do outro lado de qualquer mundo.
Mas uma noite ela sonhou com carrosséis que, na direção das luzes, se elevam no crepúsculo.
Voaram para o Inverno de Paris. Trocaram bilhetes de amor escritos a azul permanente sob o logotipo do Ritz e ensaiaram amizade com os artistas de Montmartre que ele gostava de ver falharem na impossível reprodução do sorriso dela.
Na tarde em que se encontraram sob o grande cartaz que anunciava a Milonga da noite, caía neve na torre e ele disse-lhe que estava na altura de partirem.
Em Buenos Aires, viveram em duas assoalhadas de chão de madeira corrido, por cima de uma velha escola de dança. Nas vielas esconsas da noite, entre as putas, os bêbados e uma rosa vermelha, ensaiaram os primeiros passos do tango que lhes corria nas veias. Aos sábados de manhã, buscavam entre as lojas de antiguidades a mais apropriada cadeira de baloiço para a leitura de Borges.
Quando gastaram as capas dos sapatos de dança, mudaram-se para São Petersburgo onde ele a fez czarina num palácio de verão e senhora do mais invejado dos jardim de cheiros. Às quintas-feiras, depois do bailado, ceavam shots de vodka nos camarins do teatro.
O frio devolveu-os ao sul da Europa, onde não precisaram de mais do que uma gruta escavada pelo mar, alguns tapetes persas e as velas que acendiam nas raras noites sem lua. Porque locais no universo existem onde até a lua é presença quase constante.
Morreram como morrem os Homens. Entre o ferro frio de uma assética cama de hospital ou a tepidez complacente das molduras na parede de desconhecidos rostos que alguém nos diz que foram nossos. Despacharam-lhes os restos mãos que não podiam saber que eles ali já não estavam. Que há muitos anos atrás tinham decidido abandonar o corpo para exilarem a alma no amor.
Fugitivos nas águas do mediterrâneo; numa praia da Austrália; nas avenidas de Paris; nas vielas de Buenos Aires; nos Palácios de São Peterburgo ou na gruta esquecida de uma praia do sul da Europa.
Onde, salvando a honra, viveram juntos até à eternidade.
Que fantástica viagem.
ResponderEliminarBoa noite,
Outro Ente.
Uma viagem de onde nunca se regressa.
EliminarViajantes do amor eterno.
ResponderEliminarBelo.
Beijo. :)
Obrigada, Maria.
EliminarAlmas feitas de poesia. Vivera-na enquanto a lma teve alento. Lindo, Capitã, lindo :)
ResponderEliminarA poesia dá esse alento fundamental às almas.
EliminarEu vejo-os dançar. Ainda. Belíssimo. Este blog é uma maravilhosa novidade. Agora fresco e de cores primaveris, posso voltar atrás e ler tudo de novo. Agora com outros olhos Cuca.
ResponderEliminarTive um gato chamado Cuco. Era persa real. Surdo que nem uma porta. ;)))))
Ou, pelo menos, mantendo os olhos...
Eliminar:)
Belíssimo, Cuca. É bom conhecer o caminho para a eternidade. :-)
ResponderEliminarDeve ser bom fazê-lo, também.
EliminarBom fim de semana, Susana.
Que lindo, Cuca.
ResponderEliminarPoesia em prosa.
Parabéns.
Obrigada, Linda Porca.
Eliminar(Céus! Como é estranho chamar isto a alguém!)
(Eu própria questiono-me o que diabos tinha na cabeça, sobretudo agora, quando calha assinar alguns comentários... :))
EliminarBom fim-de-semana, Cuca.
(Ao menos, Cuca é bonito)
"Despacharam-lhes os restos mãos que não podiam saber que eles ali já não estavam. Que há muitos anos atrás tinham decidido abandonar o corpo para exilarem a alma no amor.
ResponderEliminarFugitivos nas águas do mediterrâneo; numa praia da Austrália; nas avenidas de Paris; nas vielas de Buenos Aires; nos Palácios de São Peterburgo ou na gruta esquecida de uma praia do sul da Europa.
Onde, salvando a honra, viveram juntos até à eternidade. "
Emocionou-me muito. Obrigado.
Eu é que lhe agradeço ter-se emocionado.
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