quinta-feira, 21 de novembro de 2019

a redenção

Quando lhe perguntei sobre os seus pecados, disse-me que os esqueceu a todos. Quando lhe perguntei se foi medicamento, reza ou unguento, disse-me que nos braços do seu amante perdeu a memória dos seus crimes.
Assenti imediatamente.
Não creio que o amor liberte, dignifique ou salve. Mas não tenho nenhuma dúvida de que o amor, e só o amor, redime.

Mar é Morada de Sodade


Mornas

Dizia a morna que tocava ao fundo sala: 
— “mar é morada de saudade”. 
E eu pensei nos homens que afundam na imensidão do mar o peso de um coração carregado de saudade, alterando para todo o sempre a composição química do mar, acrescentada  do átomo da ausência. 
E pensei que até no verso de uma morna, que toca ao fundo da sala, é possível encontrar-se uma verdade. 

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Berliner

Desta vez não fui ver as unhas sujas do pés do Eros de Caravaggio. Também não vi, no Pérgamo, o pé da deusa de encontro à face do seu amor. Comi pretzels com champanhe e vi, na ópera, um rei que era regido por um mago.
As portas da babilónia, atravessadas por oito anos, pareceram-me mais insignificantes do que da primeira vez.
Na última noite, aprendi o que já sabia: “o amor, dizem, é a dança dos corações.”

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Créditos

Quando lhe entreguei a espada de Pirata, para que a guardasse longe do meu punho, sabia que estava a fazer uma concessão ao diabo. Já outras vezes tinha dado a alma em penhor  e nunca por um prémio tão alto. Dois outonos mais tarde, queimo os documentos do resgate numa pira de assar castanhas.
O amor, já se sabe, tem um preço tão elevado que só a crédito o conseguiremos pagar. Uma vida inteira não chegaria para saldar a minha dívida. 
Já não tenho saudades do mar. Um poeta disse-me um dia que o mar é só sofrimento e que são de sofrimento todos os lugares do mar. Não tenho saudades de nada. Nem sequer dessa inquietude que é a saudade das saudades. 

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Canícula

Deitada no chão do quarto, absolutamente imóvel, como se temesse acordar o calor para uma birra nocturna, absolutamente imóvel, deitada no chão do quarto, ocorre-me que no alto mar o calor não se atrevia.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Um doce desassossego

Ouve: em primeiro lugar, sentimos uma coisa a mexer dentro de nós, um doce desassossego; depois, uma a uma, vão voltando as recordações, como os pombos-correios. De noite palpitam nos nossos sonhos, de dia voam connosco nos nossos giros e rodopios. Sentimos falta de saber, uns pelos outros, aquilo por que passámos, de comparar observações e de ter a certeza de que foi tudo verdade, é dessa maneira, os cheiros, os sons e os nomes de sítios já esquecidos voltam gradualmente à nossa memória  e fazem-nos sinal.

In, O Vento nos Salgueiros, Kenneth Grahame, Tinta da China

Detalhes da vida doméstica de uma Pirata desembarcada

O mar ainda me corre nas veias e as ondas balouçam-me nos ouvidos, mas debaixo dos nossos pés há já longos dias que só há terra. 
A velha chaise long do convés vive agora num burguês jardim de magnólias, daqueles que combinam pérgolas com barbecues e é deitada nela que, nas horas lentas, confirmo a superioridade literária dos russos. Num dos baús, trouxe Polly, o papagaio pirata, que agora se balouça feliz e sedentário no topo de uma yuca.Trouxe também a velha bandeira que o Capitão Strut me deixou pendurar num daqueles veleiros de betos que, noutros tempos, não hesitaria em bombardear. 
Quando o Capitão Strut quis saber do meu índice de felicidade, lamentei-me pela falta das estrelas, assassinadas nas luzes das cidades. Strut saiu por dez minutos e regressou com uma caixa de luzes comprada nos chineses. Tenho uma constelação instalada no céu deste jardim e devo dizer que nunca Orion me pareceu tão verdadeiro. 
Aprendi, também, que ao contrário do mar, que por natureza é um caminho, a terra, esse destino, dá-se em pertença. 

Na terra

Navegámos durante muitos dias e várias foram as luas que nos iluminaram o rasto. 
Guiámo-nos pelas estrelas; pela força dos ventos e por mapas caducados.
Por fim, pisámos a terra. 
Enterrámos as espadas. Construímos a morada. Pagámos as dívidas. Virámos o rosto para o pôr-do-sol. Sobrevieram o silêncio e a paz. 




quarta-feira, 8 de maio de 2019

marmelada de banana; bananada de goiaba; goiabada de marmelo; Sítio do Pica-pau Amarelo

Veio o amor e tem os seus olhos.
São olhos grandes e quentes, daqueles que abarcam o
Mundo num viés distraído e o fazem, ao Mundo, estremecer um pouco, de espanto e alegria. 
Libertei Eros, a criança assassina que mantive aprisionada na cave, e o pequeno Deus, desta vez, não me destruiu a sala de estar.
Chegaram o outono e a primavera e retornará o verão, essa estação de onde vieram todos os dias de todas as outras estações. 
Daqui de onde vos escrevo, o mar é profundo e as correntes são de aço. Mas as ondas são mansas e pode-se dançar ou dormir no seu embalo.
Cumpro todos os dias, escrupulosamente, o caderno de encargos da felicidade.