domingo, 31 de dezembro de 2017

2017

o ano em que melhor errei.


sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Cartografia do coração

Pode viver-se em paz com um coração homogeneamente escuro. Mas quando nele entra a luz,  formam-se poças de sombra negra que alastram e comprimem consoante o posicionamento dos astros. É nessas lagoas de negrume que se afoga qualquer princípio de tranquilidade.

sábado, 23 de dezembro de 2017

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Da quietude

Não o percebi imediatamente. Quando o cosmos salta da esfera armilar faz-se acompanhar por um ruído impossível de ignorar. Mas quando os astros o devolvem ao seu lugar, há o rumor da folhagem a recolocar-se na direção da luz, que é uma forma extrema de silêncio, e nada mais. 
Um final de tarde em que nenhum facto relevante ocorreu, o corpo e a mente reuniram-se, por fim, no mesmo espaço físico. Então, o tempo verbal presente preencheu todo o cenário, as luzes da cidade reconciliaram-se com o desenho das constelações e eu apreendi a noção da quietude:
É o mais perfeito sinónimo da felicidade.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Bolerinho

Vem miúdo,
desce a rua à esquerda do outono
no passo firme da árvore da vida 
e enlaça-me nesse instante do sono
em que a dois corações uma batida.

Dança comigo de pés torcidos
diz-me a essência dos dias 
dá-me a violência dos tecidos 
conta-me das estórias vadias.

Vem miúdo,
sobe a rua à direita da primavera 
lava-me dos cabelos todo o sal 
manda fechar as portas da guerra
desenha-me um mundo sem mal.

Dança comigo de pés unidos 
alimenta-me a baclava 
faz todos os espaços banidos 
adormece uma rosa brava.

E, miúdo,
Corta do trapézio as cordas.
Ata-as às asas do vento norte,
que, dizem,
– nunca
voar
foi
má-sorte.

Calar o medo

Quis calar o medo com um gesto firme. Dizer-lhe que regressasse ao chão de onde veio. Pisá-lo com as solas de seda dos sapatos de bailarina. Quis levantar o pescoço à altura do arco-íris; habitá-lo por dentro e estender os braços até ao vermelho.
O medo é a neblina que sobe até aos joelhos e submerge o caminho. Tão denso que não nos deixa ver as poças por entre os pés.
Não sei quanto tempo fiquei ali, emudecida, fascinada pelos desenhos que o medo forma quando se levanta do chão.
Ou sei. O tempo que demoram as raízes a chegar ao outro extremo do mundo.

O sentido destas palavras


quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Duas luas

A segunda lua nasceu do asfalto e esperou-me, emboscada, na curva da estrada. Imensa; definitiva; resiliente como as árvores que nascem das sementes caídas dos bicos das aves e fazem o seu caminho nos beirais das casas.
Foi uma lua rosa.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Inveja

De imediato, a deusa vai à mansão da Inveja, imunda 
de negro pus. A casa feia estava escondida no fundo 
de um vale, sempre sem sol, que jamais o vento tocara, 
uma casa triste, toda a abarrotar de um frio entorpecedor, 
onde o lume falta sempre e sempre abunda a escuridão. 
Quando a virgem viril, temível na guerra, ali chegou,
parou diante da casa (nem lhe era permitido na morada 
entrar), e bate à porta com a ponta da lança.
Ao bater, as portas escancaram-se. Lá dentro vê a Inveja,
banqueteando-se com carne de víbora, com que alimenta 
a sua maldade; ao vê-la, desvia o olhar. Esta, por seu lado, 
levanta-se da terra infértil, deixando pelo chão bocados 
de víboras meio-comidas, e avança com passo indolente.
Ao ver a deusa, deslumbrante pela beleza e as armas,
lançou um gemido e contraiu a face, soltando suspiros.
A lividez cobre-lhe o rosto, todo o corpo é escanzelado;
o olhar nunca é frontal, os dentes amarelados de sarro, 
o peito esverdeado de fel, a língua encharcada em veneno.
Jamais um riso, a não ser quando vê alguém sofrendo,
jamais dorme, agitada por angústias que a fazem desperta.
Com desagrado vê os sucessos dos homens, e, ao vê-los, 
definha; e rói os outros e também a si própria se rói,
e este é o seu tormento.

Ovídio, Metamorfoses, Livros Cotovia

O amor é um cão do inferno

Há uma solidão neste mundo tão vasto
que consegues vê-la nos lentos movimentos 
do ponteiro do relógio 

pessoas tão cansadas
mutiladas 
tanto pelo amor como pelo desamor 
as pessoas não são boas umas para as outras 
o próprio para o próprio 

o rico não é bom para o rico
o pobre não é bom para o pobre
nós temos medo

o nosso sistema educativo diz-nos 
que todos podemos ser 
alarves vencedores 

não nos contou 
sobre as sarjetas 
ou sobre os suicídios.

ou sobre o terror de uma pessoa 
agonizando algures
sozinha

intocada
silente 
a regar uma planta. 

Charles Bukovski, in Love is a Dog from Hell
(Tradução minha)

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Eros

Uma vez a cada cinco anos, nem mais nem menos, deixo sair o deus menor da muito subterrânea cave onde o mantenho aprisionado. Liberto-o das correntes, retiro-lhe a mordaça, escovo-lhe as penas das asas e, desarmado de arco ou flecha, permito-lhe que se passeie pela sala, assome à janela e se sente num canto do sofá. Nåo autorizo que me olhe nos olhos; não o deixo tocar a sua música; não o perco de vista por um inteiro segundo.
As razões pelas quais lhe aligeiro o cárcere não são humanitárias. Eros é um deus, ainda que menor, é culpado e não se lhe aplica a comiseração que é devida aos homens. O ritual é um ato de fé. Se preferirem, de desesperançada esperança na reabilitação do prisioneiro.
Invariavelmente, durante um mais longo pestanejar, o deus menor, sem arma nem munições, ensaia uma tentativa de rebelião e acaba por me destruir a sala inteira.

domingo, 26 de novembro de 2017

Domingo

Depois, afundou-se o dia no rio, sobreveio o cansaço das coisas imóveis e uma réstia de frio dentro do casaco abotoado.

sábado, 25 de novembro de 2017

Música no coração

Noutra noite de fiapo de lua, haverá de trilhar o mesmo caminho com idêntica chuva nos olhos. 
A memória que mora nas células faz dos grãos de areia da ampulheta o mais requintado dos cristais. Ninguém sabe se foi há vinte anos ou se foi ontem. Dizem que, em certas noites, quando desce a tampa do piano, quando o salão se esvazia, quando a porta se fecha, a escuridão liberta a sombra de um homem que procura nas janelas de uma casa há muito vazia o contorno de uma mulher.
Dizem que, nessas noites, por toda a vila, faz-se ouvir uma música de cordas tão tristes, que os gatos vão esconder-se dentro do mar, as gaivotas enterram-se na areia e os homens roem as mãos.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

O aleph

Sei de um Aleph. Vive numa certa página de um certo exemplar de “As Metamorfoses”, de Ovídio. Encontrei-o num sítio que não revelarei, quando, entre paredes forradas a livros e sussurros, esperava, sentada numa pesada cadeira antiga. 
Quando cheguei à décima primeira linha da página, por baixo do nome de Júpiter, surgiu-me a inusitada janela para o universo. Vi um minúsculo olho desenhado a carvão e, com o livro pousado nos joelhos, foi através dele que espreitei. Então foi-me dado ver o universo. Vi cada uma das cores do arco-íris, por ordem inversa à sua. Vi os olhos vermelhos de uma criança albina e a mão despigmentada com que colheu a rosa branca. Vi uma crisálida estremecer lenta na transformação. Vi Hera, sentada à comprida mesa do Olimpo, exercer o arbítrio e a maldade que são a massa dos deuses. Vi homens iguais de distintas fardas matarem-se por razão ignota do alto dos seus cavalos assustados. Vi a escuridão da gruta onde o primeiro homem, a sangue, desenhou o primeiro animal pelo prazer de o rememorar. Vi o mar imenso, cada uma das suas criaturas, e tive saudade e medo. Vi os canhões apontados à praia e depois os mísseis que um dia alcançarão a lua. Vi Homero guiar Dante pelos círculos do Inferno e Beatriz, que estava irremediavelmente morta. Vi Eurídice maldizer Orfeu que não a libertou e o meu próprio Orfeu, para sempre preso no Hades pela minha resolução de não olhar para trás. Vi um diamante no dedo anelar de uma mulher vestida de vermelho e a sua vaga expressão de felicidade. Vi uma criança que fui eu própria e a sua saia de índia. Vi o Ganges, cada um dos seus mortos e todas as viúvas. Vi num teatro desconhecido dois amantes partilharem o mesmo veneno e tornarem-se imortais. Vi a mão de Borges escrever o seu Aleph, de onde este haveria de nascer. Vi o riso dançar dentro dos olhos de quem se espera sabendo que virá.
Depois fechei o livro e, ao acaso, devolvi-o a uma imensa estante. 
Nem sempre o universo é moeda para um riso que dança dentro dos olhos.



domingo, 12 de novembro de 2017

Diário de Bordo

Esta intrépida tripulação Pirata e a sua imodesta capitã, enquanto passavam férias estirados nas cadeiras das tabernas de Tortuga, ouviram falar de um tal de Triângulo das Bermudas e da quantidade de navios que para lá estão acompanhados dos respetivos cofres. Fartos de assaltar navios de cruzeiro carregados de velhinhos nórdicos, decidimos imediatamente, por unanimidade menos um voto, rumar ao tal do Triângulo das Bermudas, mergulhar no ouro, na prata e nas pedrarias desaparecidas e retornar, ricos e gloriosos, do fundo dos mares. Os velhos piratas de Tortuga, quando souberam do empreendimento, fizeram umas estranhas expressões com os olhos e gritaram-nos qualquer coisa que se assemelhou vagamente a palavras de aviso. Porém, decididos como somos, por essa altura, já estávamos demasiado longe para ouvir outro som que não o doce chamamento da aventura. É, pois, possível que nada saibam de nós por uns tempos.
O voto contra, é claro, foi o meu.

Enquanto o frio não vem...

... podia ficar aqui, imóvel, debaixo da árvore da vida, durante mais estações do aquelas que soubesse contar.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Bolerinhos

Arrastava na voz a quentura de um lamento apaixonado que foi enchendo a sala.
O sofrimento, quando é fingido, é doce e as suas notas douradas têm a força que aproxima os corpos. As cabeças juntam-se, os corações sincronizam-se.
Tivessem os amantes, como os músicos e os poetas, a capacidade de manter a paixão no plano do fingimento e o mundo seria um sítio perfeito para se viver.


domingo, 5 de novembro de 2017

Asas

Lá no alto,
com o silêncio dentro dos carros a fazer-me cócegas nos pés,
a solidez do ferro e a ponte ao alcance dos meus dedos,
a cabeça dentro de uma nuvem sem forma,
Vi esse anjo de papelão que,
no fim do dia,
espera-me, quieto, à entrada de casa.
E soube, então,
da urgência de lhe consertar as asas.



Recados

Blind Pew

Longe do mar e da formosa guerra,
Que, como o amor, o que perdeu glória,
O bucaneiro cego percorria
Os terrosos caminhos de Inglaterra

Ladrado pelos cães de tantas quintas,
Chacota dos rapazes do povoado, 
Dormia um combalido e tão gretado
Sono em valas de pó negro, retintas.

Sabia que remotas praias de ouro
Era seu recôndito tesouro
Aliviando-lhe a contrária sorte;

Também a ti, mas noutras praias de ouro, 
Te aguarda incorruptível teu tesouro:
A vasta e vaga e necessária morte.

Jorge Luis Borges, in Obras Completas, II, Teorema

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Blimunda

Veio de Blimunda, a melhor prova de amor da literatura ocidental. Também ela, amaldiçoada com o poder de ver os interstícios do mundo em jejum, escolheu comer um pedaço de pão antes de, a cada manhã, olhar na direção do seu amante Baltazar.
A omnisciência retira ao amor aquilo que tem de mais humano: Esse último reduto dos atos de fé.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

New moon

Nasceu da chuva a nova lua que hoje incendeia o rio.
Lá de cima, vê os telhados da cidade velha pela primeira vez.
É uma lua única. Lavada.
A luz trespassa-nos de inocência.
E, por instantes, cega-nos aos vícios dos Homens.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Pontos de não retorno


Piratas mortos não contam estórias

1. Entrei na fábrica de memórias. Procurei o balcão de atendimento. Pedi duas.
Depois sentei-me, aqui, à espera que me entreguem a minha encomenda. Embrulhada em papel celofane e fita azul.  
2. A mulher que limpa o chão passa por mim sem me ver. Tem o coração pesado, a pender-lhe para o bolso da bata, e os sapatos gastos de quem caminhou ruas demasiado compridas. Uma ruga faz-se e desfaz-se à mercê do capricho da nódoa no chão de pedra. 
3. A nódoa está ali desde o tempo em que a fábrica produzia sonhos. Depois as pessoas começaram a queixar-se da qualidade do produto. Havia quem nunca conseguisse sonhar com quem queria e quem sonhasse estórias tão longas que seriam necessários muitos meses de sonho para que chegassem ao fim. Agora já só fabricam memórias. São o sucedâneo inofensivo dos sonhos.
4. Se esperar o suficiente, acabarei por receber das mãos de alguém as duas memórias novas que encomendei. Depois, posso chegar a casa, deixar o Chet Baker embalar-me numa velha música, abrir uma garrafa de vinho e a minha encomenda, e, por fim, injetar na jugular as duas novas menórias que mandei fabricar. 



segunda-feira, 30 de outubro de 2017

cair

Antecipo a queda, rápida e inevitável. Um princípio de dor que é o pasmo a dissipar-se. As mãos ainda no chão e o corpo já erguido, a obedecer à lei da gravidade. Reposiciono os ossos e sacudo-me, como se sacodem os cães quando percebem que se magoaram. A queda será mais leve porque a rua estará vazia. Para não escorregar, atiro-me ao chão.

sábado, 28 de outubro de 2017

funambulismo

De joelhos, procurei debaixo da cama a velha caixa de prata. Arrastei-a para o fiapo de luz lunar, retirei-lhe a tampa pesada, reencontrei as minhas velhas cordas de funambulista. 
Passei metade da noite a atá-la entre as estrelas, com nós de marinheiro. Na outra metade, atravessei inteira uma constelação menor. 
Os passos são mais lentos, mas os pés escorregam menos. 
A noite, essa, é tão profunda, assustadora e densa como nos primeiros dias.

domingo, 22 de outubro de 2017

Fábula

que não sabia, noite, o cerne das palavras
rumo ao tempo, dia, quando o que fomos
era um campo resistindo, noite, ao avanço 
da luz pelo ombro do dia, perguntaste, noite,
Porque é que não pode ser sempre assim,
um dia, uma noite, e haver alguma verdade
nisto, Como por exemplo o quê, perguntei-te,
Como por exemplo nós, respondeu alguém,
mas então a noite já se misturava com o dia
e o universo amanhecia num leve tom diferente


Rui Costa, Mike Tyson para Principiantes, Assírio & Alvim

sábado, 21 de outubro de 2017

Ist mir mîn leben getroumet, oder ist es wâr?

Todas as albas trazem a sombra de muitas ausências que são uma única. Ao acordar, se estender os dedos, quase que ainda consigo tocar a água do Nilo, a lama do Assuão, uma concreta palmeira das Caraíbas, um dragão pendurado num prédio de Veneza, o botão do velho elevador a que demos um nome que já esqueci, os pés nus do Eros de Caravaggio, o portão de ferro de um palácio abandonado, o pássaro que veio morrer aos meus pés.
Como no verso de von der Vogelweide, também eu não sei se sonhei a minha vida ou se é verdadeira.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Esta tão doce banalidade

Veio a chuva, veio a noite, veio o tédio na curva da casa que já me pertence. 
O poeta dorme ao lado no livro fechado e gosto sempre de pensar no que diria sobre as porcelanas no armário. Tantos tachos, tantas velas, naperons bordados que são uma estaca espetada no peito de quem tanta diferença esperou de mim.
Não devemos ter vergonha de ser apenas isto. Uma mulher também se mede pelo número de faqueiros que tem à sua disposição. É um critério tão válido como outro qualquer. Acumulo mobiliário com a mesma alegria com que antes acumulei gotas de chuva. Não me interessa a deceção espelhada nos cantos dos lábios do poeta que dorme ao lado no livro fechado. Posso bem ter descoberto a receita para a sobrevivência: esta tão doce banalidade.

Escapar


domingo, 15 de outubro de 2017

Por um ciclone

Não sei, não sei a quem, juraria por deus se fosse de jurar e logo de jurar por deus, não sei a quem, dizia, pode agradar este bizarro outono de folhas que se acamam pelas vielas à miserável temperatura de trinta e três graus.
Preciso de um início de frio que devolva a coerência ao mundo. Ou, em alternativa, que as folhas desistam de vez de cair e declarem suspensa a estação. Preciso de uma rebelião organizada da natureza. De um ciclone que agite a cauda e arraste para o vórtice os restos putrefactos de um verão morto.
Estas folhas que hoje se passeiam sozinhas pelo chão e se enrolam em pés descalços, recebo-as com o asco da cuspidela que insulta a nostalgia.
Todas as noites abro as minhas janelas à espera do frio; pinto-me de índia e danço nua pela chuva, para, depois, acordar neste pesadelo de árvores que se esvaem à temperatura do corpo.
Não sei, juro por deus que não sei, a quem possa agradar tal desarrumação do universo.

sábado, 14 de outubro de 2017

Finalistas

Recebi dois ou três recados do além em formato de poesia póstuma.
Antes de fechar o livro, marquei-o com um anjo, de olhos abertos, preso por um fio dourado. Pendurado no poema, o anjo de olhos abertos afasta os cães cegos pendurados no tecto que afligiam o poeta nas noites de febre.
O anjo zela o sono eterno do poeta que zelou pelos olhos abertos dos anjos.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

a língua das aves


Ouvi-o o mais atentamente que consegui. Compreendi todos os seus estados: o entusiasmo disfarçado; uma felicidade infantil; o medo animal e, por fim, a esperança no fundo da caixa. 
Porém, ocorre-me agora que não percebi uma única frase das que me dirigiu. 
Talvez, com o tempo, tenhamos aprendido a língua das aves. 
É supérfluo o vocabulário dos homens quando é sabido que lhes sobreviveremos muitos milénios e tudo o que precisamos ouvir é um fio de voz, preso ao coração. 

sábado, 7 de outubro de 2017

Late for the moon

Ia alta a lua.
Demasiado para se fazer espelhar
Na água que escapou do rio.

Uma lua inatingível 
Sobre um leito de lama.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Caderno de encargos

Exigir-lhe-ei a lua, plena, a nascer sobre os velhos telhados da Lisboa nova. E a luz que têm as tardes que terminam no exato instante de um começo. Nem vento, nem brisa do deserto, nem um resto de areia entre os dentes. Exigir-lhe-ei o jardim de laranjeiras; a sombra ardente do início dos sonhos; a casa na árvore no cimo da avenida de tílias. Exigir-lhe-ei as linhas da mão; o mapa dos dias que não chegaram; a bússola que esconde dentro de peito. 
Tenho os dedos vazios, mas pagarei a crédito. 

sábado, 30 de setembro de 2017

Espólio

Não sei quantas daquelas palavras me pertencem. Quantas me foram roubadas. Quantas ofereci. Quantas me acertam e quantas me falham. Quantas erradamente faço minhas. Quantas são oferenda que rejeito. 
Não sei e já não resta quem me possa ensiná-lo. 

sábado, 23 de setembro de 2017

Diário de Bordo

No final de agosto, soltámos amarras e navegámos os últimos dias da canícula em direção ao mar das Caraíbas. 
Diz-se que fugimos de um saque mal sucedido, mas, como sempre, há mais poesia na verdade. 
Esta intrépida tripulação pirata e a sua capitã, que suportam os círculos do inferno de Dante desde que nisso alguma vantagem imaginem, são incapazes de sofrer a nostalgia de um início de outono. 
Foi do abrupto anoitecer de setembro, das folhas das árvores na calçada, da chuva mansa que perfura os corações, do vento que corta noites sem lua, do definhamento que preenche o outono, que fugimos. 
Roubámos de manhã, gastámos pela tardinha, navegámos de noite e  chegámos a Tortuga a tempo dos festejos da reentrée.
Ainda as amarras não estavam presas, já polly, o papagaio pirata, guinchava recados da terra: 
Jack está cá.
Passaremos os próximos dias no conforto deste porto que sempre nos recebe com o morno abraço da normalidade. 
E não sei se já tinha dito, mas Jack está cá.

Uma marca no espaço

No universo já não havia um incluente e um incluído, mas apenas uma espessura geral de sinais sobrepostos e aglutinados que ocupava todo o volume do espaço, era um borrifo contínuo, densíssimo, um reticulado de linhas e traços e relevos e incisões, o universo estava rabiscado por todos os lados, ao longo de todas as dimensões. Já não havia maneira de fixar um ponto de referência: a galáxia continuava a dar voltas mas eu já não conseguia contá-las, qualquer ponto poderia ser o de partida, qualquer sinal em cima dos outros poderia ser o meu, mas descobri-lo não serviria de nada, de tal modo era claro que independentemente dos sinais o espaço não existia e se calhar nunca tinha existido. 

Todas as Cosmicómicas, Italo Calvino, Teorema. 

O princípio do fim

A primeira folha que se solta da árvore e é guiada pelo vento à esquina do outono.  Um cabelo branco que uma manhã brilha mais do que o espelho que o revela. O pelotão das aves que se atrasam no caminho do sol sobre uma ceara madura. A má palavra que se formou na boca amarga de um amante. O virar da página que antecede as letras do título do último capítulo. Sessenta segundos para a meia na noite nas vésperas de um solstício. A primeira madrugada de chuva de agosto. A nota inicial do compasso lento na tecla do piano. A nódoa que alastra no pano de puro branco. O roçar das asas da mosca na prata metálica da teia. 
Esse instante de indiferença em que esqueci o teu nome. 

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Lua Nova

Até o rio, cujo leito não lhe permite perder-se, procura na noite escura a sua lua. 
E é esta a minha frágil alegação de defesa.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Mãos vazias

Entrego as mãos à manicure com o cuidado de quem lhe deposita um Fabergé. Ela estica-me os dedos e olha-me com expressão inquisidora. Não adianta explicar que estas mãos te pertenceram. Que conservam a memória da forma das tuas. Que dentro delas coube o mundo. 
Há-de devolver-mas tal como as vê: vazias. 

Devenire

Não sei que lua existe lá fora. 
As minhas janelas abrem para as árvores e, se quisesse, daqui, poderia tocar-lhes as folhas. 
Não há céu nesta nova vida. 
Nem mar.
Só terra. 
Tanta terra. Tanta terra. Tanta terra.

sábado, 16 de setembro de 2017

Piras

Ardeu durante muitos dias, no centro da terra, a gigantesca pira onde incinerámos o amor. Queimámos em fogo lento o triste património de um inventário comum. Levantámos as mãos e sacudimos grilhetas estelares.  Dançámos sobre o mar e vimos, na alba, um céu cor de liberdade. Abraçámos o esquecimento e eram doces as suas asas. 
Diz-se que ensurdecemos aos nossos próprios nomes.

Mas depois vieram as chuvas e, juntamente com a suja lama de cinzas, sobrou tudo quanto não sabe arder: Os acordes que são a música. As metáforas da poesia. Uma constelação sazonal. O pesadelo que um homem desenhou em Altamira. O granito e o basalto. A fome. O fundo de todos os mares. 

Tanto quanto baste para que nunca nada se perca. 

Fábula Antiga

No princípio do mundo o Amor não era cego;
Via mesmo através da escuridão cerrada 
Com pupilas de Lince e olhos de Morcego.

Mas um dia, brincando, a Demência, irritada,
Num ímpeto de fúria os seus olhos vazou; 
Foi a Demência logo às feras condenada.

Mas Júpiter, sorrindo, a pena comutou. 
A Demência ficou apenas obrigada
A acompanhar o Amor, visto que ela o cegou,

Como um pobre que leva um cego pela estrada.
Unidos desde então por invisíveis laços,
Quando o Amor empreende a mais simples jornada, 
Vai a Demência adiante a conduzir-lhe os paços.

António Feijó, in, 366 Poemas que Falam de Amor, Vasco Graça Moura, Quetzal.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

How to build a home

Tal como se diz de alguns mortos, que não sabem que o são, assim sucede com os recentes desexilados. É como ser fantasma ao contrário. Afantasmar. Desfantasmar. Infantasmar. Os dedos, de  súbito, conseguem empurrar as portas; os espelhos passam a ser habitados por uma expressão qualquer; o corpo materializa-se diante dos olhos daqueles que, entretanto, se esqueceram de que existimos. 
Até a casa é preciso aprender a possuir. Esboço nas paredes cada vez menos nuas os traços do meu coração, esperando fazê-la minha depois de impregnar de jazz os tecidos e de deixar a poesia ascender ao nível do pó dos candeeiros.

Reparei que, para os mesmos efeitos mas com aparente maior sucesso, o meu cão esfrega-se nas coisas. 

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Aniversários

Escondi as mãos dentro dos bolsos para que ele não visse um resto de solidão que ainda trago agarrado às unhas. Ambos fingimos o acaso, silenciando o facto de se terem passado exatamente cinco anos e uma hora. Os sessenta minutos, presumo, que durou a batalha interior. Um dia ganharemos a guerra. Eu terei as unhas limpas. Ele não terá bandeira alguma pela qual lutar. Seremos o que fica depois do esquecimento e a paz, como o previu a canção, abater-se-á sobre ambos. Estaremos mortos. 
Então, num qualquer crepúsculo, haverá um homem e uma mulher que são todos os homens e todas as mulheres e a eles pertencerá esta infinita, inexplicável, saudade. 

domingo, 3 de setembro de 2017

Dilemas

Como é meu hábito, chego depois de toda a gente ao maior dilema da vida adulta: Como arrumar os livros na estante? Depois de duas horas de indecisão cheguei a resultados inaceitáveis. Ponderei separar a não ficção, a poesia e a filosofia. Fiquei sem saber o que fazer com a mitologia e, por razões de justiça, pareceu-me bem juntá-la à filosofia. Quando me apercebi, já zizek dormia encostado à Bíblia. 
As dificuldades não se limitam às subespécies. É evidente que Borges em nenhuma circunstância pode ficar ao lado de Bukovski. Se arrumar todo o último na poesia, incluindo os contos, encosto Borges a Candance Bushnel, a senhora do Sexo e a Cidade. Optei por isolá-lo, acabando por perceber que a obra publicada em português não se adapta ao tamanho de nenhuma das minhas estantes. Não aceito espaços vazios em redor de Borges. Ocorreu-me juntá-lo às suas queridas Mil e Uma Noites ou ao D. Quixote. A primeira solução não serve porque tenho várias edições (todas más). A segunda não enche a prateleira. Outra dificuldade é a classificação de obras de autores como Plutarco, Ovídeo e pequenas bizarrias como as Viagens de Marco Polo. O que fazer com esta gente que não escreve nem ficção, nem não ficção, nem poesia? E os guias de viagem? Podem misturar-se com livros sobre viagens que não são guias? E os sul-americanos? Não seria preferível juntar o realismo mágico todo no mesmo canto? Pode o Asterix viver ao lado do Calvin?
Como é que as pessoas resolvem estes problemas?
Era tão mais fácil ser itinerante exilada.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Butterfly

Antecederam-no duas borboletas brancas. Recordo-me vagamente de as ter visto, numa qualquer despedida, pousadas no seu ombro direito. Deitada em frente ao mar, assisti ao bailado hipnótico que desenrolaram diante dos meus olhos. No final da dança, descansaram por um instante no meu pulso antes de retomarem a travessia do mar. Também elas navegaram muitas milhas para chegarem a esta Ilha. 
Depois, como a bruma; o vento norte; um sonho de sesta ou um deus, ele veio e cobriu-me os ombros.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Paraíso perdido

O que me quis dizer e não soube, ouvi-o, em eco permanente, durante muitas luas, como se houvesse fixado residência no interior de um búzio. O que me quis mostrar e não conseguiu, vim vê-lo e assombra-me agora os olhos. 
Se unir o que não me disse ao que não me mostrou obterei o esboço aproximado da perda. Foi nada menos que o mais próximo da perfeição a que podem aspirar os humanos.
Perder o paraíso - digo a mim própria para que a perda me seja tolerável - é, apesar de tudo, preferível a perder-nos no paraíso. É esse o destino dos que desafiam as limitações humanas.

Ah, o Algarve em agosto...


domingo, 27 de agosto de 2017

Desexilada

O exílio, é claro, não termina por decreto no dia em que regressamos a casa.
Virá a manhã de sábado em que morarei nesta cidade. Hoje, porém, ainda é apenas a cidade onde morei um dia.
Não é fácil ensinar-se geografia ao coração.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Colecionismo

As mudanças de casa são uma excelente ocasião para encontrarem objetos inúteis que foram, um dia, suficientemente  valiosos para justificarem o incómodo de os desejar, guardar e até esconder. 
Entre o pasmo e a nostalgia - creio até ter descoberto a pasmalgia, um estado de espírito ainda não catalogado  - abri um envelope cujo deslembrado conteúdo é uma vasta coleção de fotografias dos pés de um único homem. Entre muitas outras, dois pés assentes no convés de um barco e uma bandeira em plano de fundo. Um pé num horizonte azul com nuvens brancas. Dois pés submersos na água do mar. Dois pés pousados no mapa de um cartaz a anunciar um rally. Dois pés semienterrados na areia escura. Um pé pousado no braço de um sofá de riscas. Dois pés a tornearem o volante de um carro. Dois pés assentes numa mesa de mistura de som. Um pé junto do que me parece ser a janela de um avião. Outro pé ao lado de um copo de bushmills.  Os mesmos pés novamente submersos na água do mar...
Depois de inspeccionar as fotografias como se as visse pela primeira vez e de fechar o envelope, hesitei no destino a dar a tão bizarra coleção, angariada ao longo de vários meses. 
Os pés retratados há muito que sustiveram os passos da distância e os dias lavraram os vastos quilómetros de um esquecimento semeado.
Teria sido demasiado pragmático atirar o envelope para o lixo; dramático, dirigi-lo à morada do modelo; romântico, guardar as fotografias num álbum apropriado. Optei por devolvê-lo ao caos, enfiando-o ao acaso numa de várias caixas cheias de fotografias. 
É quase, espero, tão improvável reencontrar a minha bizarra coleção de pés, como voltar a amar o suficiente para, sequer, compreender a sua existência. 

sábado, 19 de agosto de 2017

Verão

As gotas de água do verão escorrem apressadas pela garganta da clepsidra. É por ela que meço os dias, contando o tempo do fim para o princípio. As cores começaram a esbater-se a partir do meio do mês de agosto. As manchas de suor e sal nos sofás brancos do lounge contam estórias dos que já partiram. Pelo chão das ruas, à noite, há riachos de gelado derretido e sangria derramada que formam pequenas lagoas nos cantos. Deixam nódoas que durarão até às primeiras chuvas de novembro. Já não há, por esta altura, um único corpo virgem de sol. E até o mar parece exausto, fingindo  expulsar, desesperançadamente, aqueles que lhe colonizam os bancos de areia. 
Este não é um verão igual aos outros na minha estância balnear. 
É aquele verão que não verei morrer. 

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Pinto as unhas dos pés de azul

Pinto as unhas dos pés de azul e penduro-me no trapézio. O sol tirou-me as estrelas mas sei que, se souber esperar, ser-me-ão devolvidas, inteiras, depois do anoitecer. As estrelas são corpos mortos. Tudo o que no mundo é amável já se extinguiu. Tudo o que é detestável também. 
Há o pó. Uma espécie de pó. Uma nuvem de pó.
Dormito de cabeça para baixo, pendurada no trapézio. Sonho um pesadelo com uma criança rechonchuda, a quem querem cortar os braços para a salvar da extinção. É um sonho de inspiração Rafaelita. A criança é, na verdade, um anjo que vi pintado num fresco a precisar de restauração. Creio que salvo os braços da criança antes de decidir, dormindo, que é apenas um pesadelo. Acorda-se, todos o sabemos, quando se identifica a origem do mal. No amor também. A racionalização extingue tudo. Até as estrelas. 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Anedota muçulmana

Vi um homem prestes a saltar de uma ponte.
– Não salte! – disse eu.
– Ninguém me ama – disse ele.
– Deus ama-o. Acredita em Deus? – perguntei.
– Sim – disse ele.
– É muçulmano ou não muçulmano? – perguntei.
– Muçulmano – disse ele.
– Eu também! – disse eu. – Deobando ou barelvi?
– Barelvi – disse ele.
– Eu também! Tanzeehi azmati ou tanzeehi farhati? – perguntei.
– Tanzeehi farhati – disse ele.
– Eu também! Tanzeehi farhati jamia ul uloom ajmer, ou tanzeehi farhati ul noor mewat? – perguntei. 
– tanzeehi farhati ul noor mewat – disse ele.
– Morre, Kafir! – disse eu, e empurrei-o.

Arundhati Roy, in, O Ministério da Felicidade Suprema.

Eterna fraude

São eternas as mãos do anjo de lata que ao amanhecer nos aponta o rio, ou o céu, consoante a direção que escolhe Eolo. É eterna a inconstância dos deuses e a sua avidez da mortalidade que pertence aos homens. E eterna é ainda esta velha memória das coisas dentro das células: um jardim, um tigre, uma pena, um búzio, certo olhar, uma onda que sempre embala a mesma rocha.

sábado, 5 de agosto de 2017

L-I-S-B-O-A

Deu-me, de presente de boas-vindas, a melhor prata que esconde no rio; três nuvens com o formato das copas das árvores; ruas razoavelmente vazias à hora da sesta. A casa cheirava àquilo que cheiram as nossas casas quando regressamos para as habitarmos: essência de culpa e esperança. Abri as portas devagar. Estive ausente tantos anos que é possível que os fantasmas se tenham cansado de me esperar. 
À noite, bem sei, Lisboa não me embalará o sono. Nunca dormi decentemente nesta cidade. 
Digo-lhe ao ouvido que, desta vez, não a abandonarei. Lisboa volta ao rosto para que não lhe leia o desdém. Mede-me a temperatura dos pés e sabe, como o sabem as mulheres muito velhas e os anjos, que nunca regresso para ficar. 

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Em quantos caixotes cabe a vida?

E uma vez mais, a minha vida útil dentro de caixas de cartão; a inútil em sacos pretos do lixo. E a sensação de que o que fica é o pouco que importaria conservar.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

sábado, 22 de julho de 2017

Tangos

Quiseram os deuses, numa noite sem lua, essa frágil sombra projetada nas ruínas daquilo que foi um palácio. Moveu-se ao ritmo do tango, deslizou pelos restos das paredes e desfez-se na aurora.
Quiseram os homens a morte dos amantes. 

terça-feira, 18 de julho de 2017

Resultados

Maioria A

Seu psicopata! Não há limites para o seu egoísmo. Era capaz de matar a avó por duas bolachas de manteiga; a sua imagem preferida é a que o espelho lhe devolve e o destino de férias que merece é uma ilha deserta. Em suma: um pirata!
Leitura recomendada: o código penal.

Maioria B

Saiba que as pessoas ponderadas e que se pautam sempre por critérios de bom senso são irritantes e incomodam as outras. Aprenda a ser humano. Desenvolva ódios de estimação e parta a baixela da sua avó para saber como soam os pratos de encontro ao soalho. Merece umas férias numa colónia de geriátricos alemães.
Leitura recomendada: O Psicopata Americano.

Maioria C

Se está a ler isto, é improvável que os seus resultados tenham sido maioria C. 
Estas pessoas só fingem existir neste mundo porque, na verdade, vivem noutro lado qualquer. É inútil analisá-los já que jamais alguém os compreenderá. 
Merece umas férias sozinho num hotel com uma cama decente onde, finalmente, consiga dormir.
Leitura recomendada:Heródoto, as Viagens de Marco Polo ou outra bizarria qualquer.

Maioria D

De acordo com um estudo norueguês só dez por cento das pessoas com resultados maioria D responderam com sinceridade às perguntas. Se está incluído nesses, saiba que deve preocupar-se. As boas pessoas morrem antes das más. A sua família e os seus amigos aproveitam-se de si e ainda o convencem que lhe estão a fazer um favor. Merece umas férias para um campo de refugiados.
Leitura recomendada: Lassie Come Home.

Pessoas que responderam com alternativas E

Está na altura de se conformar com as hipóteses apresentadas na ementa e parar de aborrecer os chefes de cozinha com dramas do tipo "quero a salada de gambas mas sem a salada e com molho de gaspacho". O inconformismo é sobrevalorizado e prejudica a hegemonia social. Aproveite as férias para fazer uma daquelas viagens-circuitos organizador das sete da manhã à meia noite que é para se ir habituando a não ter ideias.
Leitura recomendada: manuais de instrução.


Inquérito de verão

1. O cão do vizinho incomoda-te todas as noites, ladrando pela madrugada.
A) desenvolves um plano para assassinar o bicho;
B) vais falar com os donos e ponderas queixar-te à polícia;
C) tomas comprimidos para dormir;
D) aproveitas a oportunidade para leres Proust durante a noite.

2. Pedro Chagas Freitas escreve um novo livro.
A) investigas as livrarias que colocaram o livro nos escaparates e recusas-te a aproximar das mesmas;
B) escreves um email de protesto aos editores e aos livreiros;
C) quem é o Pedro Chagas Freitas?
D) vais a correr comprar o livro.

3. Estás na praia em vias de morrer por inanição. Só vendem bolas de Berlim a €1,20 e dispões de apenas €1.
A) furtas a carteira do banhista mais próximo; 
B) tentas negociar o preço com o vendedor, apelando à tua conjuntura fome versus falta de dinheiro;
C) comes um snack de algas;
D) testas aquela teoria de acordo com a qual é possível alimentar-nos do sol.

4. Como lês os romances.
A) fechados e deitado com a cabeça sobre eles; 
B) do princípio para o fim; 
C) os últimos capítulos antes do princípio;
D) abrindo ao acaso e começando sempre numa página qualquer.

5. As tuas férias de sonho.
A) à aventura num desses sítios cheios de mosquitos e tifo como o Cambodja;
B) um mix quatro dias numa cidade com extensão de cinco a praia exótica; 
C) qualquer sítio onde possas dormir em paz e desligar o cérebro;
D) quando se trabalha naquilo de que se gosta está-se sempre de férias.

6. Estás fechado numa casa com quatro canais nacionais.
A) partes os vidros e saltas do terceiro andar;
B) vês as notícias e fazes zapping na esperança de encontrares um filme que ainda não tenhas visto;
C) vês os desenhos animados e aproveitas para dormir a sesta;
D) encontras uma boa oportunidade para assistires, sem culpa, a telenovelas.

7. Os teus primos afastados telefonam-te a avisar que vêm passar contigo as suas férias.
A) mudas de cidade nesse mesmo dia;
B) a ideia não te agrada por aí além mas é sempre possível convencê-los a fazer atividades que não te incluam e que te permitam descansar deles;
C) ficas de cama com uma gripe histérica e aproveitas a canja de galinha que te farão;
D) metes férias, compras um novo grelhador e t-shirts iguais para todos.

8. As razões pelas quais respondes a inquéritos imbecis.
A) queres ganhar um prémio. Tem de haver um prémio, certo?
B) não estás a fazer nada de jeito e é uma atividade mais interessante do que ler o blogue do Pipoco Mais Salgado; 
C) qualquer coisa que te afaste dos teus pensamentos é coisa boa.
D) tens pena da pessoa que fez o inquérito e achas que se importa. 

9. Uma personagem que te inspire
A) as personagens infra não inspirariam nem uma lesma;
B) zeus;
C) o gato que ri da Alice no País das Maravilhas;
D) o Dalai Lama.

10. O livro que nunca lerás
A) o livro de S. Cipriano porque suspeitas que não teria nada para te ensinar;
B) qualquer um do Gustavo Santos ou do Chagas Freitas ou daquele brasileiro que agora não recordo o nome mas que todos os meses edita um livro;
C) um livro de culinária porque, no mínimo, provocam queimaduras;
D) não existe livro que não lesses assim estivessem reunidas certas circunstâncias que aqui não temos paciência para enumerar.

(Inquérito inspirado neste aqui do Pipoco Mais Salgado, mas em melhor, é claro)





domingo, 16 de julho de 2017

Fim de ano

Por aqui contamos os dias pelas férias grandes. 
O meu ano chegou ao fim. O balanço, que a cobardia me promete ser inútil, ficará por fazer. Os maus dias não enchem duas mãos e o mar já há muito os levou. Os bons são todos os outros. Na contabilidade dos dias, aqueles em que nada foi são igualmente dias ganhos.
O exílio físico terminou por decreto. Um final de tarde, quando estava na casa de banho, fui informada que Lisboa me aceitou de volta. Assim. Sem o abraço da poesia ou a proteção de um céu azul.
O outro exílio, o da alma, estará muito além de um carimbo no passaporte nas mãos dos burocratas.
Não faço juras de fidelidade a essa puta que é Lisboa. Pago-lhe, como sempre paguei, com a moeda que tenho na mão. 
O coração, ou o que dele resta, deixo-o penhorado ao sul. 
E desta vez não me despeço. Não saberia fazê-lo. 

sábado, 15 de julho de 2017

Vão lá ler, vá

Numa simplificação caricatural, dir-se-á que a nova aproximação ao mundo tem uma fixação afectiva em tudo quanto provenha da Apple e tenta libertar-se do mobiliário IKEA que comprou em jovem. Simpatiza naturalmente bom Barack Obama e vê em Steve Jobs um ícone inspirador ou, melhor dizendo, um modelo de sucesso cool que lhe serve de lenitivo para as frustrações e os desaires do quotidiano. Há muitos anos, excitou-se com o Filofax, mas tudo indicia que estabilizou em definitivo no Moleskine. Desconfia se será aceitável eleger Murakami como um «grande escritor» e, às escondidas, chega a ler Nicholas Sparks, por causa dos «sentimentos». Em matéria de transportes, justifica o recurso à Uber com o argumento da falta de educação e de higiene da comunidade taxista. O uso de relógios Swatch desvaneceu-se há muito, por mais que a marca se tente reinventar. Sobressai uma demanda vertiginosa e sôfrega, quase demencial, de novidades. Sempre que algo se torna demasiado vulgar, sofre uma depreciação abrupta, sendo descartado como banal, popular em excesso.

António Araújo, Da Direita à Esquerda, editado por Saída de Emergência 

quinta-feira, 13 de julho de 2017

A longa noite

Na tão longa noite, além dos gritos das gaivotas, do desconforto do calor, das melgas, de um resto de luz dos faróis de algum carro que passou, veio também o perdão. Às cinco da manhã, último instante da madrugada em que são possíveis ações memoráveis, consegui perdoar-lhe. Creio que se perdoa à velocidade com que se ama e, como diz a canção, quando eu amo é sempre devagar. No dobrar das mil e uma noites, surgiu aquela, maior do que todas as outras, em que veio, finalmente, o perdão.
A manhã ofereceu-me um mundo de aparência igual ao da véspera mas, em tudo, diferente. Como se também a matéria de que são feitas as coisas pudesse depender do peso do coração. 
Saberei um dia aquilo que todos os animais pressentem: que o perdão é a face dourada da moeda do desprezo. 

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Diário de Bordo

A esta intrépida tripulação Pirata, durante dez meses por cada ano, não falha a coragem para o sabre ou a ambição para o saque. Lava os dentes com rum, usa com bravo orgulho o tapa-olhos, cultiva um sem fim de pequenas bizarrias desrazoáveis e mantém o coração colonizado pela arte da boa velha pirataria. 
Porém, logo que vê o mês de julho aparecer na folha do calendário, nasce-lhe das entranhas a pavloviana compulsão para se enfiar numa marina portuguesa, daquelas com lojas onde se vendem galos de Barcelos dourados, Nossas Senhoras de Fátima que adivinhem o tempo, porta-chaves com golfinhos e doces de amêndoa fossilizados.
Já levo desta vida de capitã anos suficientes para saber que há tormentas às quais é inútil apontar a proa.
Percebi que era altura de mudar a rota quando a idiotia me entrou pela escotilha mascarada de encomendas on line: colchões insufláveis em forma de lagosta, patinhos amarelos que boiam, cestas com folhos ridículos, barbatanas rosa-pastilha-elástica, pareos de toda a sorte de floreado e caixas de sardinhas e entremeada gordurosa.
Temendo que a própria da Quarteira fosse comprada na internet e entregue no meu navio, anunciei que aportaremos durante os próximos dois meses na marina mais próxima da dita.
Estamos neste exato momento a poucas milhas da costa, à espera que a lua se apague para que possamos fazer uma discreta entrada.
Estes dez-meses-por-ano-intrépidos-Piratas, aproveitam os dias de espera para encherem os insufláveis, montarem as fiadas de flores que tencionam usar ao pescoço  e desenharem escorpiões e osgas de hena em todas as partes do corpo.
Eu...bem... leio o Livro da Selva, de Kipling, lamento-me por em vez de ter ido para pirata não ter antes seguido a carreira de exploradora de tribos selvagens e sonho com as doces cores do outono.

domingo, 9 de julho de 2017

No céu de julho

Mas depois anoiteceu e foi o teu nome que apareceu inscrito no céu. Sob as esquinas dos sem abrigo, nas varandas das famílias, nos telhados dos gatos e até nas montanhas desertas. O teu nome desenhado a luz. Graffitti inapagável. Segredo gritado. Mancha insultuosa. 
O teu nome inscrito no céu de julho. 

SG

Subiu toda a avenida, caminhando pelo passeio, sem fazer uso das asas uma única vez. 
Talvez tivesse uma asa ferida, talvez preferisse caminhar, talvez também as gaivotas se esqueçam, por vezes, que as asas existem para voar. 

sábado, 8 de julho de 2017

Inavegável

Pedi um céu apocalítico.
Mas a alta lua 
iluminou,
sem incendiar,
um frágil braço de mar.







quinta-feira, 6 de julho de 2017

Comunicações Intergaláticas

Sobreviver-te é isto:
 A Billie Holiday a espalhar o seu jazz pela sala. O sol a sumir-se devagarinho nas ondas do mar. Uma lua insonsa a erguer-se. Os pratos por lavar na cozinha. O copo meio cheio em cima da mesa. Um locutor a debitar presumíveis desgraças sem som. O cão que comprei para enganar a tua ausência a ladrar na varanda. Livros esquecidos nos sítios onde se esquecem livros. Essa espécie de sobrevida. 
Cinco anos ensinam-nos a morte. Já não me espanto todas as manhãs com a mesma notícia. Não te procuro entre as multidões. Não espero que o telefone toque por ti. Não anseio aparições em sonhos. Não me atormento com a culpa. Não imagino os restos orgânicos daquilo que foste. 
Só a realidade, aquela que só o era depois de te a contar, só a realidade, essa, é que nunca mais regressou.
Sobreviver-te é isto:
Uma interminável sequência de factos banais que não se sucedem realmente porque a tua morte os tornou inconcretizáveis.  

terça-feira, 4 de julho de 2017

Insone

A insónia encontrou a minha cama voltada a sul e ocupou inteiro o espaço do colchão. É uma sombra cinzenta que nasce no chão e vai subindo pelas paredes até submergir o quarto. Não sei durante quantas noites se manterá, assim, colada à pele. É uma febre de ruídos noturno: gritos de zanga, uivos de cães, desespero de gaivotas, rodas de carros, passos alienados. Dói-me o lençol sob a clavícula, sinto crescer as unhas dos pés, ensurdece-me o rumor dos meus cabelos.
Debaixo da mancha cinzenta oprimem-me as pilhas de livros na cabeceira, os cabides no armário fechado, um bilhete dentro do bolso das calças, uma fotografia guardada no telefone e vários emails perdidos no espaço virtual.
À insónia pertence esta culpa sem rosto. A indefinível sensação do crime que julgamos ter cometido mas que não conseguimos recordar. A aceitação do castigo que é a consciência da profunda noite. 
E depois, pousar a cabeça na almofada como quem a oferece ao machado do algoz. 
Essa quase morte. 

sábado, 1 de julho de 2017

Regressos

Um dia perguntaram-me de que fugia.
Agora, nas vésperas do regresso de um longo exílio, sei finalmente a resposta:
Do que sobrou daquilo que perdi. 


sábado, 24 de junho de 2017

35°,5

A metade de mim que tem o outono instalado por debaixo das costelas, rejubilou com os vinte pingos de  chuva que esta tarde conseguiu amparar com o rosto.
A outra metade, trouxe a areia da praia para o chão da sala e, nele, deitou-se de costas à espera de qualquer coisa.

terça-feira, 20 de junho de 2017

domingo, 18 de junho de 2017

Fotografia de uma manhã II

Para todos os outros é apenas a fotografia de um pátio, captada de um plano inferior. Para lá da mancha de sombra, vê-se um caminho de terra vermelha e depois dele os canteiros das flores e a seguir as árvores de fruto e, muito ao fundo, a baixa cerca branca por trás da qual se estende o mar infinito.
Há, ainda, no canto superior direito, um rasgo do céu azul da manhã. 
Para um único homem, porém, será  a forma que o abandono lhe deixou tatuada na íris; o registo exato da sua perspetiva do mundo na manhã em que uma espera se tornou vã.
Para mim, é o que não se pode ver: 
O degrau de pedra antiga, por trás da imagem. E sobre ele, pousada, uma mão aberta, a suster o frágil equilíbrio do corpo. 
E, nesse gesto, também do mundo. 


Fotografia de uma manhã I

Qualquer destino, por mais longo e complicado que seja, na realidade consta de um só momento: o momento em que o homem fica a saber para sempre quem é.

Jorge Luis Borges, in Biografia de Tadeo Isidoro Cruz, O Aleph.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Dois loucos

Quando a guerra chegou e as gentes partiram com a triste roupa no corpo, quando os pianos e os lustres e os espelhos foram abandonados ao pó e ao saque, quando os invasores encheram as ruas e acenderam fogueiras no soalho das salas, quando as colunas de fumo afugentaram as últimas aves, quando as bombas destruíram todos os muros e o sol foi oculto por milhões de partículas de caos, sobraram, ainda, uns metros do jardim de laranjeiras no cimo do monte. 
E nós permanecemos deitados, na imobilidade eterna de uma cama de balouço de seda branca, sob a sombra das duas ou três árvores sobejantes, distraídos do ruído dos homens pelas notas do jazz, concentrados na métrica do poema do fim de tarde, alheados da destruição pela beleza das asas de uma borboleta, protegidos do horror pela incapacidade de o representarmos. 
E enquanto a guerra nos lambia os pés, espantava-nos o assombro dessa aurora lilás que sonhávamos ter nascido apenas para nós. 
Foi assim que nos tornámos imortais. 

domingo, 11 de junho de 2017

Mercados

Deu-me meia dúzia de estórias, a música e uma constelação que não se pode ver daqui. 
Com a infâmia, paguei-lhe até ao último cêntimo.
A música que ainda me dá, recebo-a a crédito.
A infâmia não é moeda de troca. É penhor eterno. 


sábado, 10 de junho de 2017

sexta-feira, 9 de junho de 2017

A invenção do amor

Quando o nevoeiro se adensou e o interior da montanha ficou submerso e as nossas mãos deixaram de encontrar as respetivas bocas, 
para nos salvar da banalidade
inventei o amor. 

Na palma da tua mão aberta pousei o engenho de asas sobredimensionadas.
 
Mas vi a sua sombra cruzar a lua 
e não sei se a vertigem  
foi perda 
ou 
foi orgulho.
O amor, dizes-me, não nos salvou.

Pequenas são sempre as mãos para as asas, 
penso, 
quando o amor é ave 
que se inventa 
a lápis azul.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Outras coisas

Os três volumes de Sophia, recusados com desdém pelo meu poeta morto.
O anel de flores-do-lis incrustadas que, talvez sem ilusão, vai atravessando três gerações.
Os sapatos prateados que, numa tarde de chuva, um homem calçou nos meus pés nus.
A algema que durante dez anos trouxe o pulso direito preso ao coração.
O quadro onde pintei a felicidade e que é hoje mera prova de cronologia factual.
Uma boneca de sabão esquecida na estante dessa casa na planície cuja rua tinha um nome que já esqueci. 
O bilhete de um concerto a que fui sem assistir e aquele outro bilhete de uma viagem a que assisti sem ir. 
São os objetos que me sobreviverão. 

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Decoração de interiores

Respondi-lhe, mentindo, que faz parte dos meus pensamentos. 
Os pensamentos são feitos da matéria do amanhã: infinidade existencial que se renova diariamente e se autojustifica.
Aquilo de que faz parte é das minhas memórias: Presunçoso cemitério de insignificâncias, decorado por anjos graníticos com lodo entre os dedos dos pés. 

Sinerman


Sinerwoman

O anjo negro que me vela a espertina, tenho a certeza, folheia os livros na minha ausência. Pretendo recorrer à insídia que há na literatura para educar esse fantasma. É para que os leia que finjo esquecer na mesa de prata folhada As Mil e Uma Noites, a Ilíada e a Osisseia, um livro de poemas de Borges, outro de Herberto, todos os contos de Nabokov e o Novo Testamento do Lourenço. São as bases da civilização e, tanto quanto me parece, são suficientes para que um anjo, ainda que negro, apreenda as noções básicas de humanidade. Uma vez educado, conto que o anjo que me calhou em má sorte encontre o caminho de regresso à luz, esqueça por inteiro a sua função de me proteger e, finalmente, abrace uma profissão capaz de exercer.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Porteiros do Neverland

Não os amei por razão menos interesseira do que o acesso às chaves do Neverland. 
É um mundo de céus azuis, pássaros coloridos, borboletas sem lagarta, cascatas de água morna que terminam em arco-íris que terminam em potes de ouro guardados por duendes de chapéu verde com uma pena no topo. Um mundo sem estações através do qual se caminha voando e onde a noite nos é leve porque chega e parte enquanto dormimos nas ervas altas da planície. Não existem o ontem e o amanhã. Ninguém nasce e ninguém morre. Falamos todos uma língua única. Desconhecem-se a dor, a fome, o frio, a falta. Não possuímos coisas. Quando nos aborrecemos, mudamos para a outra margem do rio; fazemos de uma árvore a nossa casa ou escavamos um castelo na areia. É-nos indiferente outra música, outra poesia, outra beleza que não aquela que carregamos dentro de nós ou conseguimos aprender nas flores.
Os homens que amei eram porteiros e zeladores do Neverland. Amei-os pelas suas funções e ninguém em sã consciência pode censurar-me por isso.

Selinho Blog em Bom


Discurso de vitória:
Minhas senhoras, meus senhores, indecisos, indefinidos, indiferentes, habitantes do Lago Tanganita, visitantes, observadores sociais e pessoas que vieram ao engano:
Em meu nome e em nome desta intrépida tripulação pirata, agradeço este prémio maravilhoso à Palmier Encoberto, a quem desde já congratulo publicamente pelo seu irrepreensível gosto em matéria de blogues. A ela e ao Pipoco Mais Salgado devo os meus dez leitores. Há mais um, que é a minha irmã, mas até ela só me descobriu através do PMS e só por aqui passa uma vez por mês. 
Poderia dedicar este selinho à memória de Borges, a quem roubei 70% do conteúdo dos posts, ou a alguns bloggers a quem roubei os restantes 30%. Mas dado que isso implicaria um exercício de modéstia que, Ala é grande, nunca experimentei, decidi dedicá-lo à Cláudia Filipa em representação de todas as pessoas que, não sendo suficientemente egomaníacas para alimentarem um blogue, têm a misteriosa paciência de os lerem, assim viabilizando a sua existência. 
Ah... e também agradeço à imprensa estrangeira. 

P.S. Tenho de colar isto na lateral direita? 






terça-feira, 30 de maio de 2017

Dos afetos

Os afetos são a motriz invisível, inodora, inaudível, que os pragmáticos gostam de ignorar. Até vinte e quatro horas antes do fim do prazo de escolha. A partir da vigésima  terceira hora somos todos sentimentais. 

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Ciclo de vida dos jaracandás

Enquanto dormias, as flores dos jaracandás amanheciam mortas e as ruas, ainda ontem tapetes liláses, iam-se cobrindo de um ouro decrépito, resinoso,  agarrado à sola dos pés. 
Colou-se-me a putrefação dos jaracandás e a imagem da boneca, meia despida, abandonada por entre as ervas. Os olhos grandes, azuis, acusadores, erguidos para o primeiro céu da manhã.
Enquanto dormias, desintegrava-se, alheia à tua inocência, a beleza das coisas.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Olá boa noite, sou a Cuca, a Pirata e venho contar-vos coisas da minhavida

Descobri que é muito mais fácil sermos corajosos quando conhecemos o rosto do inimigo.
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Teoria do caos

A oscilação das asas da minha borboleta tem exata correspondência com aquele final de manhã em que nos cruzámos numa das ruas mais movimentadas de Lisboa e, contra todas as probabilidades cósmicas, no espaço de tempo que leva a dizer a frase "dou um estalo na cara a quem me disser que é melhor amar e perder do que nunca ter amado" percebemos o que havia para perceber. 
Então, enquanto ainda o julgava para sempre perdido por entre a multidão, tirei do bolso do casaco o rascunho do destino que tão pacientemente havia desenhado, transformei-o numa inocente bola de papel e atirei-o para o primeiro caixote do lixo que encontrei. 
Quinze anos e dois meses mais tarde, no dia em que ele morreu, já aquele encontro casual tinha mudado profundamente a vida de centenas de pessoas que nunca o viram. 
Ontem, ao ser confrontada com um dos efeitos de longínqua distância do furacão que se seguiu a esse bater de asas, não consegui, inutilmente, evitar perguntar-me se valeu a pena.
Tivesse um dos dois optado por outra rua, ou demorado mais um minuto numa das lojas, ou escolhido o lado da sombra, e o ADN da humanidade seria para sempre outro.
Percebi depois, ou sempre o soube, não sei, que, independentemente dos danos colaterais, a dúvida a respeito desse encontro, encerraria o mesmíssimo grau de estupidez de não saber se valeu a pena conhecer-me a mim própria. 

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Formiga

Armazenei-as o mais que soube. Mas, ao entardecer, pendurada no telhado pelos dedos dos pés, vi fugir-me da vista a última das metáforas. 
Este inusitado início de tristeza, bem sei, não é se não o espaço vazio que antecede a chegada da realidade. 
Ninguém precisa da realidade.


sexta-feira, 19 de maio de 2017

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Ganhar a perda

Depois de deixar de contar as luas, passaram tantas que já não saberia convertê-las em anos. Escureceram as noites brancas e aprendi o sono. Profundo. Sem sonhos. Sem a sombra dos jaracandás, o cheiro das camélias junto ao lago ou a sensação da montanha nas costas. 
O sono levou tudo: 
a febre do seu corpo na minha pele; o exato peso da mão dele na minha; o jazz no tom da voz. 
Ordenei às células o esquecimento e elas, implacáveis, obedeceram-me, assassinando-o.
Ganhei a guerra do desamor. 
Instalei-me no amplo território das noites escuras e silenciosas onde nenhuma candeia alumia o caminho, nem a rebelião dos sonhos se faz ouvir. 
O diabo a quem vendi a alma cumpriu integralmente a sua parte. 
Ficou este nada, expurgado do que, afinal, era tudo.

terça-feira, 16 de maio de 2017

A papoila

Quando partir, pensei, se alguma vez conseguir partir, pensei, quem reparará naquela única papoila que todos os anos nasce no mesmo canteiro em frente à minha porta? Quando já não estiver aqui para numa qualquer manhã de março ser surpreendida pelo regresso da mesma e única papoila, pensei, como farás para que me lembre que exististe em mim?

sábado, 13 de maio de 2017

Diz Herberto

– A água tem um som.
Mar inesgotável que desliza no silêncio.

Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo:
ouço-me para dentro. Mal posso
dar no mundo um passo 
sem tremer: sinto-me 
balouçado num sonho imenso, ando
nas pontas dos pés.

E estou só e a noite.

Há palavras que requerem uma pausa e silêncio.
(...)

Herberto Helder, Poemas Completos 

segunda-feira, 1 de maio de 2017

A Senhora dos Papagaios

E então, procurámos Tagik, o berbere contador de estórias, nas portas do deserto. E uma vez mais sentámo-nos no interior de uma tenda feita do azul dos sonhos, por cuja fresta de pano se viam, ao longe, as areias do tempo. E uma vez mais o velho berbere estendeu a mão ressequida para receber as nossas moedas que fez tilintar na mesma taça de prata trabalhada.
E então, Tagik, de voz arrastada, contou-nos da Senhora dos Papagaios:
Existiu no início dos dias, mas Alah é quem mais sabe, uma mulher que desafiou as leis do universo.
Ousou, sob o império do monocromático nude, fazer-se acompanhar por uma mala amarela. E perante o pasmo do povo e a reprovação dos deuses e a revolta dos animais a mulher sentou-se numa praça de pedra branca e abriu a mala e dela retirou mil papagaios, fazendo-os empoleirar-se na palma da mão, primeiro, entre as suas omoplatas, depois, no eixo da lua, por fim. E os papagaios espalharam-se pelo mundo e criaram as florestas e os piratas.
E os velhos deuses, afrontados, castigaram a mulher, tirando-lhe a si a voz que, por vingança, deram aos papagaios; aprisionando-a, muda, no verde imóvel de uma tela; deixando-a para o todo o sempre agarrada à sua mala amarela, fonte de todo o mal.
E ali ficou, para toda a eternidade, o cruel aviso aos homens.
Mas Alah é quem tudo sabe.

N.b. A Senhora dos Papagaios é esta.
E esta.
E esta.
E esta.
E esta.
E esta