sexta-feira, 24 de abril de 2015

Auto-suficiência

Sentei-me no divã e fingi ouvir-me durante três entediantes quartos de hora enquanto me debatia com a problemática da escolha do prato para o jantar. 
Ouvi o suficiente para perceber que as lamúrias relacionavam-se com uma insistente sensação de tédio; a banal sisma na inutilidade inerente ao processo de existência; uma fobia psicótica na perda do controlo de qualquer coisa inexplicável; a desvontade para as coisas em geral.
Ainda sem ter conseguido decidir-me entre a carne e o peixe, fui fazendo uns humm-huns concordantes, apenas para provar que estava atenta. 
Ocasionalmente, e não com pouco esforço, centrei a atenção na ladaínha abstrata das angústias existenciais que, para dizer a verdade, pareceu-me um decalque de um monólogo roubado a um mau filme francês. 
Já irritada por não conseguir decidir-me quanto ao jantar, sugeri-me que concretizasse. 
Foi uma maldade. Os pacientes raramente conseguem concretizar a fonte das suas dores psicossomáticas e ficam ali embasbacados sem saber o que dizer, indecisos entre inventar qualquer tragédia ou admitir que o seu estado é um capricho de burgueses a quem o mimo tornou insatisfeitos.
Uma vez que seria ridiculo mentir-me, optei por me me calar. 

Prescrevi-me uma dieta à base de Dickens e Twain. Proibi-me Pavese e Foster Wallace. Sugeri chocolate sem restrições e aquisição de vários pares de sapatos novos. Também recomendei atividade física, mas recebi de volta uma expressão que me retirou imediatamente quaisquer ilusões quanto ao acatamento desta última instrução. 
Agradeci-me desconfiada e perguntei quando teria de voltar.
Respondi-me que não o fizesse enquanto ainda conseguisse dormir. Vem nos livros que ninguém enlouquece antes de deixar de dormir. Pode sempre confiar-se numa mente treinada para cumprir trâmites processuais. 
Como ainda não tinha conseguido escolher o que queria jantar, aproveitei os cem euros que cobrei pela consulta e decidi ir gastá-los no restaurante. 

7 comentários:

  1. !!! Tão bom, Cuca. Vou largar o meu Dr. Pinel e marcar uma consulta nesse divã.

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    1. O teu Dr. Pinel talvez fosse mais complacente com a angústia, mas em contrapartida não é expectável que receitasse sapatos.

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  2. Delicioso, absolutamente delicioso.
    (repito à falta de melhor caracterização que faça justiça...)

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  3. É Jung que diz que o contacto de duas personalidades é como uma reacção química, não é? Se houver reacção, ambas saem transformadas. Deste contacto sabemos da transformação de uma: sai jantada. Mas... e a outra? Hein?

    (Excelente, Capitã!)

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    1. A outra está a ler Darwin, enquanto come chocolate e usa um sapato novo em cada pé, desconfiada que lhe roubaram 100 euros.

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