terça-feira, 28 de novembro de 2017

Inveja

De imediato, a deusa vai à mansão da Inveja, imunda 
de negro pus. A casa feia estava escondida no fundo 
de um vale, sempre sem sol, que jamais o vento tocara, 
uma casa triste, toda a abarrotar de um frio entorpecedor, 
onde o lume falta sempre e sempre abunda a escuridão. 
Quando a virgem viril, temível na guerra, ali chegou,
parou diante da casa (nem lhe era permitido na morada 
entrar), e bate à porta com a ponta da lança.
Ao bater, as portas escancaram-se. Lá dentro vê a Inveja,
banqueteando-se com carne de víbora, com que alimenta 
a sua maldade; ao vê-la, desvia o olhar. Esta, por seu lado, 
levanta-se da terra infértil, deixando pelo chão bocados 
de víboras meio-comidas, e avança com passo indolente.
Ao ver a deusa, deslumbrante pela beleza e as armas,
lançou um gemido e contraiu a face, soltando suspiros.
A lividez cobre-lhe o rosto, todo o corpo é escanzelado;
o olhar nunca é frontal, os dentes amarelados de sarro, 
o peito esverdeado de fel, a língua encharcada em veneno.
Jamais um riso, a não ser quando vê alguém sofrendo,
jamais dorme, agitada por angústias que a fazem desperta.
Com desagrado vê os sucessos dos homens, e, ao vê-los, 
definha; e rói os outros e também a si própria se rói,
e este é o seu tormento.

Ovídio, Metamorfoses, Livros Cotovia

O amor é um cão do inferno

Há uma solidão neste mundo tão vasto
que consegues vê-la nos lentos movimentos 
do ponteiro do relógio 

pessoas tão cansadas
mutiladas 
tanto pelo amor como pelo desamor 
as pessoas não são boas umas para as outras 
o próprio para o próprio 

o rico não é bom para o rico
o pobre não é bom para o pobre
nós temos medo

o nosso sistema educativo diz-nos 
que todos podemos ser 
alarves vencedores 

não nos contou 
sobre as sarjetas 
ou sobre os suicídios.

ou sobre o terror de uma pessoa 
agonizando algures
sozinha

intocada
silente 
a regar uma planta. 

Charles Bukovski, in Love is a Dog from Hell
(Tradução minha)

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Eros

Uma vez a cada cinco anos, nem mais nem menos, deixo sair o deus menor da muito subterrânea cave onde o mantenho aprisionado. Liberto-o das correntes, retiro-lhe a mordaça, escovo-lhe as penas das asas e, desarmado de arco ou flecha, permito-lhe que se passeie pela sala, assome à janela e se sente num canto do sofá. Nåo autorizo que me olhe nos olhos; não o deixo tocar a sua música; não o perco de vista por um inteiro segundo.
As razões pelas quais lhe aligeiro o cárcere não são humanitárias. Eros é um deus, ainda que menor, é culpado e não se lhe aplica a comiseração que é devida aos homens. O ritual é um ato de fé. Se preferirem, de desesperançada esperança na reabilitação do prisioneiro.
Invariavelmente, durante um mais longo pestanejar, o deus menor, sem arma nem munições, ensaia uma tentativa de rebelião e acaba por me destruir a sala inteira.

domingo, 26 de novembro de 2017

Domingo

Depois, afundou-se o dia no rio, sobreveio o cansaço das coisas imóveis e uma réstia de frio dentro do casaco abotoado.

sábado, 25 de novembro de 2017

Música no coração

Noutra noite de fiapo de lua, haverá de trilhar o mesmo caminho com idêntica chuva nos olhos. 
A memória que mora nas células faz dos grãos de areia da ampulheta o mais requintado dos cristais. Ninguém sabe se foi há vinte anos ou se foi ontem. Dizem que, em certas noites, quando desce a tampa do piano, quando o salão se esvazia, quando a porta se fecha, a escuridão liberta a sombra de um homem que procura nas janelas de uma casa há muito vazia o contorno de uma mulher.
Dizem que, nessas noites, por toda a vila, faz-se ouvir uma música de cordas tão tristes, que os gatos vão esconder-se dentro do mar, as gaivotas enterram-se na areia e os homens roem as mãos.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

O aleph

Sei de um Aleph. Vive numa certa página de um certo exemplar de “As Metamorfoses”, de Ovídio. Encontrei-o num sítio que não revelarei, quando, entre paredes forradas a livros e sussurros, esperava, sentada numa pesada cadeira antiga. 
Quando cheguei à décima primeira linha da página, por baixo do nome de Júpiter, surgiu-me a inusitada janela para o universo. Vi um minúsculo olho desenhado a carvão e, com o livro pousado nos joelhos, foi através dele que espreitei. Então foi-me dado ver o universo. Vi cada uma das cores do arco-íris, por ordem inversa à sua. Vi os olhos vermelhos de uma criança albina e a mão despigmentada com que colheu a rosa branca. Vi uma crisálida estremecer lenta na transformação. Vi Hera, sentada à comprida mesa do Olimpo, exercer o arbítrio e a maldade que são a massa dos deuses. Vi homens iguais de distintas fardas matarem-se por razão ignota do alto dos seus cavalos assustados. Vi a escuridão da gruta onde o primeiro homem, a sangue, desenhou o primeiro animal pelo prazer de o rememorar. Vi o mar imenso, cada uma das suas criaturas, e tive saudade e medo. Vi os canhões apontados à praia e depois os mísseis que um dia alcançarão a lua. Vi Homero guiar Dante pelos círculos do Inferno e Beatriz, que estava irremediavelmente morta. Vi Eurídice maldizer Orfeu que não a libertou e o meu próprio Orfeu, para sempre preso no Hades pela minha resolução de não olhar para trás. Vi um diamante no dedo anelar de uma mulher vestida de vermelho e a sua vaga expressão de felicidade. Vi uma criança que fui eu própria e a sua saia de índia. Vi o Ganges, cada um dos seus mortos e todas as viúvas. Vi num teatro desconhecido dois amantes partilharem o mesmo veneno e tornarem-se imortais. Vi a mão de Borges escrever o seu Aleph, de onde este haveria de nascer. Vi o riso dançar dentro dos olhos de quem se espera sabendo que virá.
Depois fechei o livro e, ao acaso, devolvi-o a uma imensa estante. 
Nem sempre o universo é moeda para um riso que dança dentro dos olhos.



domingo, 12 de novembro de 2017

Diário de Bordo

Esta intrépida tripulação Pirata e a sua imodesta capitã, enquanto passavam férias estirados nas cadeiras das tabernas de Tortuga, ouviram falar de um tal de Triângulo das Bermudas e da quantidade de navios que para lá estão acompanhados dos respetivos cofres. Fartos de assaltar navios de cruzeiro carregados de velhinhos nórdicos, decidimos imediatamente, por unanimidade menos um voto, rumar ao tal do Triângulo das Bermudas, mergulhar no ouro, na prata e nas pedrarias desaparecidas e retornar, ricos e gloriosos, do fundo dos mares. Os velhos piratas de Tortuga, quando souberam do empreendimento, fizeram umas estranhas expressões com os olhos e gritaram-nos qualquer coisa que se assemelhou vagamente a palavras de aviso. Porém, decididos como somos, por essa altura, já estávamos demasiado longe para ouvir outro som que não o doce chamamento da aventura. É, pois, possível que nada saibam de nós por uns tempos.
O voto contra, é claro, foi o meu.

Enquanto o frio não vem...

... podia ficar aqui, imóvel, debaixo da árvore da vida, durante mais estações do aquelas que soubesse contar.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Bolerinhos

Arrastava na voz a quentura de um lamento apaixonado que foi enchendo a sala.
O sofrimento, quando é fingido, é doce e as suas notas douradas têm a força que aproxima os corpos. As cabeças juntam-se, os corações sincronizam-se.
Tivessem os amantes, como os músicos e os poetas, a capacidade de manter a paixão no plano do fingimento e o mundo seria um sítio perfeito para se viver.


domingo, 5 de novembro de 2017

Asas

Lá no alto,
com o silêncio dentro dos carros a fazer-me cócegas nos pés,
a solidez do ferro e a ponte ao alcance dos meus dedos,
a cabeça dentro de uma nuvem sem forma,
Vi esse anjo de papelão que,
no fim do dia,
espera-me, quieto, à entrada de casa.
E soube, então,
da urgência de lhe consertar as asas.



Recados

Blind Pew

Longe do mar e da formosa guerra,
Que, como o amor, o que perdeu glória,
O bucaneiro cego percorria
Os terrosos caminhos de Inglaterra

Ladrado pelos cães de tantas quintas,
Chacota dos rapazes do povoado, 
Dormia um combalido e tão gretado
Sono em valas de pó negro, retintas.

Sabia que remotas praias de ouro
Era seu recôndito tesouro
Aliviando-lhe a contrária sorte;

Também a ti, mas noutras praias de ouro, 
Te aguarda incorruptível teu tesouro:
A vasta e vaga e necessária morte.

Jorge Luis Borges, in Obras Completas, II, Teorema

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Blimunda

Veio de Blimunda, a melhor prova de amor da literatura ocidental. Também ela, amaldiçoada com o poder de ver os interstícios do mundo em jejum, escolheu comer um pedaço de pão antes de, a cada manhã, olhar na direção do seu amante Baltazar.
A omnisciência retira ao amor aquilo que tem de mais humano: Esse último reduto dos atos de fé.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

New moon

Nasceu da chuva a nova lua que hoje incendeia o rio.
Lá de cima, vê os telhados da cidade velha pela primeira vez.
É uma lua única. Lavada.
A luz trespassa-nos de inocência.
E, por instantes, cega-nos aos vícios dos Homens.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Pontos de não retorno


Piratas mortos não contam estórias

1. Entrei na fábrica de memórias. Procurei o balcão de atendimento. Pedi duas.
Depois sentei-me, aqui, à espera que me entreguem a minha encomenda. Embrulhada em papel celofane e fita azul.  
2. A mulher que limpa o chão passa por mim sem me ver. Tem o coração pesado, a pender-lhe para o bolso da bata, e os sapatos gastos de quem caminhou ruas demasiado compridas. Uma ruga faz-se e desfaz-se à mercê do capricho da nódoa no chão de pedra. 
3. A nódoa está ali desde o tempo em que a fábrica produzia sonhos. Depois as pessoas começaram a queixar-se da qualidade do produto. Havia quem nunca conseguisse sonhar com quem queria e quem sonhasse estórias tão longas que seriam necessários muitos meses de sonho para que chegassem ao fim. Agora já só fabricam memórias. São o sucedâneo inofensivo dos sonhos.
4. Se esperar o suficiente, acabarei por receber das mãos de alguém as duas memórias novas que encomendei. Depois, posso chegar a casa, deixar o Chet Baker embalar-me numa velha música, abrir uma garrafa de vinho e a minha encomenda, e, por fim, injetar na jugular as duas novas menórias que mandei fabricar.