sábado, 4 de abril de 2015

Diário de Bordo

Da Costa de África, por onde navegámos durante um par de meses até enchermos os cofres com diamantes roubados, trouxe, além das gemas, a malária. 
A febre começou numa noite de lua cheia e ficou pelos menos até que outra lua se esvaziasse num céu feito de basalto negro e estrelas. 
Estranhamente, estes bárbaros que são a minha tripulação, não só não aproveitaram a ocasião para me atirarem ao mar e roubarem o navio, como até cuidaram razoavelmente de mim. Passei um mês e meio deitada na minha cama num delírio apenas interrompido pelas ressacas de Gin tónico que provavelmente os bloggers, são sempre eles a fonte dos meus problemas, leram na internet que era bom para a malária, decindindo ignorar aquela parte do quinino como factor preventivo da doença. 
No meu delírio terei falado da Ilha do meu passado e de um Pirata que desertou da vida dos mares para morrer em terra na falta de glória de um final de existência burguês e manchado pelo pecado da vulgaridade.
Gualtiero, o Italiano, o único de nós que sempre se move pelo coração, aguçando o faro na direção de uma daquelas histórias de amor, desgraça e destruição, convenceu os outros a rumarem à minha Ilha, com o pretexto de que se fosse para morrer, seria de esperar que gostasse de fazê-lo no sítio onde aparentemente nunca mais teria deixado de estar.
Foi assim que uma noite, no intervalo entre um brufen e um benuron, arrastada até ao convés e perante o ar expectante da tripulação, deparei-me com a linha da costa da minha Ilha. Ali estavam, cada enseada, cada ilhéu, montanha, cascata e farol, exatamente com a cor e a forma como há vários anos atrás os decorei, que é como quem diz, os guardei no coração. 
Pedi os binóculos e obriguei Andrhiminir, o cozinheiro Pirata - que vocês ingnóbeis leitores nunca perceberam que tem o mesmo nome do cozinheiro dos deuses na mitologia viking, que aqui nada é por acaso - a carregar-me até ao cimo do mastro. 
Dali, entre a fraqueza da febre e a força do vento norte, vi cada um dos rostos dos habitantes da minha Ilha, ocupados a fazerem exatamente aquilo que faziam quando eu estava entre eles e dedicava os meus dias a observá-los. Vi a minha empregada, na casa que foi minha, dobrar com a mesma generosidade os vestidos de seda de outros, vi cada um dos pescadores nas docas de cigarro mordido no canto da boca, vi amassarem o pão que tantas vezes comi, vi todos os sítios onde fui triste e onde fui contente e as mesmas pessoas que foram parte dessa tristeza ou contentamento. Um por um. Desviei a lente do binóculo que tudo vê antes de por ela ser apanhado um antigo Pirata, desertor dos mares, que creio enterrado vivo num cemitério burguês, em local assinalado por uma bonita e branca lápide de mármore fashion. 
Vi tudo o que suportei ver. 
Então desci do mastro e dei a minha primeira ordem em mais de um mês e meio:
-bombardeiem tudo, até que não sobre anjo, lápide, morto, nem fantasma. E depois, é zarpar para o mediterrâneo que se faz primavera.
Nessa noite, antes de recolher à minha cama e expurgar as últimas febres do mosquito, guardei uma vez mais no coração o céu da minha Ilha.
Acordei no mediterrâneo, depois de uma travessia confusa entre os delírios da febre e a realidade das coisas. 
Estavam todos, como sempre, na piscina a apanhar sol.

(Ou de como escreveu Rui Costa num poema que não encontro e portanto mais ou menos cito de cor:
"O gato, comi-o.
Foi a forma que encontrei de o trazer comigo")

11 comentários:

  1. Mas, cara capitã, a água tónica, componente fundamental do dito gin, contém generosa porção de quinino, precisamente. O gin tónico é a solução preventiva primordial para quem pretende navegar por distantes, e diferentes, marés.

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    1. Preventiva, meu amigo.
      Estes bárbaros mantiveram-me embriagada durante todo o período da doença.

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  2. Cuca, a Pirata, lembrou-me os Piratas de Pina :)

    "Há pessoas que não acreditam em ilhas. Acham que as ilhas são coisas inventadas, em que só se acredita quando se é criança. Por isso, chega um dia em que julgam que já não são crianças e deixam de acreditar em ilhas.
    Outras pessoas pensam que uma ilha é uma terra rodeada de mar e de névoa por todos os lados. Todavia, no meio da névoa, dentro da ilha, está-se em muitas mais coisas do que numa terra, pode até estar-se num sítio desconhecido dentro de nós. Chamo-me Manuel e vivo numa ilha, ou uma ilha vive em mim, não tenho a certeza, uma ilha rodeada de mar e de névoa por todos os lados, principalmente por dentro."

    Belíssimo texto o seu, Cuca.

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    1. Não conhecia mas fui investigar. É fantástico. Obrigada.

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  3. Magnífico cara Cuca, magnífico.
    Abraço.

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  4. Grande Capitã Cooka, reduzir aquilo que amamos a pó não o mata para nós, apenas o apagamos de campo de visão. É sim, o G&T faz maravilhas por nós, pela, sede, pela moral ( ou falta dela) pelo relax... Como boa pirata também alinho num Cuba Libre com Rum de 10 anos; nãO tem quinino, mas produz a sua própria sauna. Peço que não me considere AWOL e não me faça andar pela prancha.
    Aye Aye, captain :)

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