sábado, 30 de abril de 2011

Repetir Abril

Não se deixem enganar pelo título. Cuca não escreve posts com conotações políticas.
Abril foi um mês perdido num estado comatoso-vegetativo. E é só por isso que era útil repeti-lo.
A minha actividade cerebral limitou-se ao esforço de concentração necessário à tarefa de me manter agarrada às paredes para não cair no meio do chão e correr o risco de me deixar esmagar por pés humanos grandes e desastrados. Daqueles que não sabem dançar.
Abril foi também o mês em que deixei de ser insone.
Embalada por tanta inacção preferi dormir a aturar-me.

Temo que seja o início de uma tendência.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

a candura do folclore ingénuo

saudades lamechas


da Cuca e da Estrelita.
(banda sonora desta declaração à escolha de cada uma)

domingo, 24 de abril de 2011

o cordeiro do sacrifício

No altar da perfeição, enfeitado pelo pragmatismo e mascarado de sucesso, todos os dias se oferecem sacrifícios de inocentes.
Os altares, já se sabe, são locais perigosos e propensos a asneiras diversas.
E, por vezes, sem que demos conta, no afã do afio das facas e dos pescoços cortados em nome do que nada interessa, somos nós que acabamos transformados no cordeiro do dia.


sexta-feira, 22 de abril de 2011

Concerto Pascal

Eles sentaram-se nos bancos da praça, recostaram-se, cruzaram as pernas, deixaram cair o pescoço para o lado em atitude de profunda reflexão e ficaram imóveis, entregues à quietude da noite com os olhos fixos nas estrelas e os espíritos perdidos entre dimensões inatingíveis. Ou isso.


Na dúvida se aquilo que estava a fazer poderia ser considerado difusão de obra alheia, e na falta da respectiva licença, optei por fingir não ter dado conta que, atraída pelo som que saía das minhas janelas, uma modesta multidão transformou-se em plateia de um concerto de jazz.


Quarenta minutos depois, o CD chegou ao fim e eu fechei as janelas.
Os velhos da praça não se foram logo embora.

Ficaram ali a comentar que aquilo do jazz só era pena não ser o Tony Carreira a cantar.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

G.Steiner dizia há dias que todos deveríamos saber de cor passagens inteiras dos livros que mais gostamos.
Porque saber de cor é saborear com o coração.
Já me contentava em conseguir fazê-lo com a minha própria vida.
Conservar a memória do deleite, quero dizer.

dorrr dji cotovêlu



a expressão teve origem nas cenas de pessoas sentadas em bares, com os cotovelos apoiados no balcão bebendo e chorando um amor perdido. então, de tanto ficar naquela posição, as pessoas ficavam com dores no cotovelo. atualmente, é muito comum utilizar essa expressão para designar o despeito provocado pelo ciúme ou a tristeza causada por uma decepção amorosa.


in dicionário brasileiro da língua portuguesa

Deus está nas mais pequenas coisas


esta terceira Páscoa da K. fica marcada por dois grandes acontecimentos: a descoberta do leite com Nesquik pela caneca e o despertar para os dogmas católicos, aquilo a que os mais dramáticos gostam de apelidar de “mistérios da fé”.


pois que Medusa não deixa passar em branco nenhuma ocasião festiva, já que é uma criatura festiva por natureza e adora porque adora ter gente em casa. por mais atarefada que esteja a sua vida. festa é festa. e já começou a incutir na K. o gosto por receber. o animal doméstico que há em Medusa despertou com a fúria de quem anda enjaulado há tempo demais e lá estavam as duas a preparar o centro de mesa e um arranjo para a entrada de casa, tudo alusivo à Páscoa. tratava-se do jantar que a K. oferece aos seus padrinhos de baptismo no Domingo de Ramos.


cola, tesoura, papel de várias cores. ovos de esferovite para pintar. tintas. pintainhos. o resultado foi sendo alcançado ao som da história de Jesus que excluiu as partes ruins, devidamente substituídas por uma tareia de palmadas no rabo. a K. ia ouvindo com atenção e, por vezes, espanto. que asneira terá Jesus feito para levar tanto castigo? apesar das cogitações, o interesse maior pelas tintas era evidente.


arranjo composto, palmas e abracinhos. quem conhece já sabe que lá em casa não há boneco que não tenha nome. e resolveram dar um ao pintainho.




- e então meu amor, que nome vamos dar ao pintainho…?

- é o pintainho Jesus.





em tempo, o risoto a la parmigiana ficou divino.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Haja critério!


- E foi vinho que o sr. ingeriu?
- Sim, sim, vinho tinto. É a bebida que eu gasto. Que eu não bebo aguardentes, nem café, nem essas coisas.
- ...

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Love issues




(...) I'll see you in the sunlight
I'll hear your voice everywhere
I'll run to tenderly hold you
But, Darlin' you won't be there


I don't wanna say good-bye
For the summer
Knowing the love we'll miss
Let us make a pledge
To meet in September
And seal it with a kiss

Haverá, talvez, uma coisa ainda mais ridícula que as promessas dos amantes:

O esforço que fazem os amantes para não cairem no ridículo de fazer promessas.

terça-feira, 12 de abril de 2011

perder a cabeça ::: pelo olhar de um príncipe












“… não sentirás. quase nada.


que darei ao carrasco uma moeda de ouro para que afie meticulosamente a espada e o faça de um golpe só.

mmmmmmm… a linda santinha cefalofore que tu serás.”

Até vem no Nietzsche e tudo

OS SAPATINHOS SÃO JIMMY CHOO, primavera de 2011


Finalmente, consideremos quão ingénuo é dizer: “O homem deveria ser de tal ou de tal modo!” A realidade nos mostra uma encantadora riqueza de tipos, uma abundante profusão de jogos e mudanças de forma – e um miserável serviçal de um moralista comenta: “Não! O homem deveria ser diferente.” Esse beato pedante até sabe como o homem deveria ser: ele pinta seu retrato na parede e diz: “Ecce homo!”[ Mas mesmo quando o moralista dirige-se a apenas um indivíduo e diz “você deveria ser de tal e de tal modo!”, ainda não deixa de ser ridículo. O ser humano, visto pela frente ou por trás, é um pedaço de destino, uma lei a mais, uma necessidade a mais para tudo que há de vir e será. Dizer-lhe “muda-te” é exigir que tudo seja mudado, mesmo retroactivamente. E realmente houve moralistas consequentes que desejavam tornar o homem diferente, isto é, virtuoso – desejavam-no reformado à sua própria imagem, como pedante: e, para tal fim, negavam o mundo! Nenhuma pequena loucura! Nenhum modesto tipo de imodéstia! A moral, à medida que condena por sua própria causa, e não a partir dos interesses, considerações e pontos de vista da vida, é um erro específico pelo qual não se deve ter compaixão – uma idiossincrasia de degenerados que causou danos imensuráveis. Nós outros, nós imoralistas, pelo contrário, fizemos de nosso coração uma morada para todo tipo de entendimento, compreensão e aprovação. Não negamos facilmente; encontramos honra no fato de sermos afirmativos. Cada vez mais, nossos olhos se abrem a uma economia que necessita e sabe utilizar tudo que a sagrada insensatez do padre, a doentia razão do padre, rejeita – aquela economia na lei da vida que encontra alguma vantagem mesmo nas espécies mais repulsivas de pedantes, padres e virtuosos. Que vantagem? Mas nós mesmos, nós imoralistas, somos a resposta.


In Friedrich Nietzsche, Moral Como Antinatureza


Com trÊs filhas pequenas em casa, tomara que esta verdade nunca seja a nossa.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

o teu fantasma







ela estava em pé, em frente à janela da minha sala, em carne e osso. como Flaubert a descreveu: vestido, pele branca, quase pálida, grandes olhos castanhos directos. os lábios eram mais carnudos do que me lembrava, mas a boca era pouco desenhada. os cabelos, antes escuros, deveriam ser longos. “linda Bovary” – pensava, enquanto ela se voltou para mim. “estás à procura de alguma coisa?” – ao ouvi-la, apavorei-me. estou louco.

o vulto também falava, era ela, e como nunca tinha existido, não estava morta. “o que queres?” – perguntou novamente, caminhando na minha direcção – deixei de raciocinar.

repetiu a pergunta, olhou em volta e sentou-se no meu sofá. ao fim de alguns minutos, conversávamos. contei-lhe em que ano estávamos, país, cidade, dia. respondi a cada pergunta que me fez, tentando ser engraçado. “queres comer alguma coisa?”

“sim, estou com fome.”

enquanto comíamos, eu no chão, ela estendida, não parei de falar. contei-lhe em resumo sobre guerras, arte, música, coisas que pensei que lhe interessariam. ela me olhava atenta – “continua", dizia-me, quando eu fazia alguma pausa; mas eu não podia mais. não podia mais com a ideia de estar louco a falar com o vazio da minha sala.

“gostaria de continuar, mas tu precisas de ir embora.” – disse-lhe gravemente.

“não… fala-me do amor …”

“bem – comecei um discurso – o único direito que temos é a morte, e em alguns países, a matar. a liberdade é um bêbado equilibrando-se numa corda bamba. ser jovem é a única religião; a beleza, a única virtude; o amor é uma doença curada com antidepressivos. não podemos caminhar nas ruas à noite, e durante o dia fazêmo-lo com medo; estamos enjaulados e devidamente anestesiados”.

(pausa).

“no mais, minha querida, todos nós fazemos uns jogos, às vezes somos peões, rainhas, reis, dependendo das posições… e tu, ainda serias considerada louca. temos a loucura toda classificada em termos e analogias mitológicas, que nos dizem o que está certo, o que está errado, quem está triste ou angustiado. e disso tu não escaparias, com certeza. tu e toda a maioria não batem bem, estão insanos por causa de neuroses e porque sonham demais ou de menos”.

(ataque).

“e tu continuarias a ser considerada uma puta, uma messalina, uma vadia… sinto muito dizer-te”. ela só me olhou com ar de quem tinha dado o melhor que podia a quem não lhe reconhecia qualquer valor à oferta.

(desistência).

beijei-a e não senti culpa.

Deficiências


A capacidade de ultrapassar as perdas é uma característica inata nos seres humanos. Infelizmente, alguns nascem com uma deficiência na alma que os torna absolutamente imunes aos efeitos da passagem do tempo na intensidade do desgosto.

Como quem nasce sem audição ou sem olfacto eu nasci amputada na possibilidade de ultrapassar as minhas perdas.


Não há imagem de pinhal que não me retorne a angústia de ter perdido a boneca Clara na sombra de um pinheiro. Trinta anos.

As castanhas assadas no S. Martinho sabem-me, todas, à morte do meu avô. Vinte e um anos.

Qualquer passagem por prateleiras de supermercado com latas de comida de animal seca-me a garganta na memória do gato Óscar. Catorze anos.

Acordar todas as manhãs continua a ser uma bofetada diária feita de cinco dedos de ausência daquele que foi toda a minha vida futura. Três anos.

E por fim…

…Um mês.


Se ao menos hoje eu conseguisse passar por um pinhal sem reviver o desgosto da perda da boneca Clara, ainda poderia ter esperança. Esperança que daqui a trinta anos menos um mês, a minha última perda – e a maior de todas elas – pudesse, finalmente, ser ultrapassada.

domingo, 10 de abril de 2011

Artistas circenses

Sobre as pessoas que não podemos ter, aprendi algo muito importante:
Não existem.

Inspeccionada

Esperou três semanas pelo convite que não chegou. À quarta semana veio sem ser convidada. Encontrou uma casa sem número de porta, numa rua que não vem no mapa e no meio de uma localidade sem placas que a denunciem. A mesma eficácia germânica fez com que também descobrisse a identidade da única pessoa que, para além de mim própria, possuía uma chave. Instalou-se antes de eu chegar. Mudou a disposição dos móveis. Atirou as minhas refeições pré-cozinhadas para o lixo. Reorganizou-me o roupeiro. Disciplinou a empregada. Desceu de Lisboa ao inferno com a finalidade de inspeccionar as minhas novas condições de vida. Durante três dias – ou terão sido três anos? – fiscalizou tudo. Desde o número de curvas que faço no percurso de quinze quilómetros de casa para o trabalho, à qualidade da carne do único supermercado disponível, aos níveis de sal do pão que me vendem, ao grão de areia das praias mais próximas, à árvore genealógica do meu senhorio israelita.

No final, porque o pragmatismo é hereditário e o meu tem fonte conhecida, concluiu da seguinte forma:


- Bem, o melhor que se pode dizer é que quem consegue viver aqui, consegue viver em qualquer lugar.

amor e uma cabana

Portugal


quinta-feira, 7 de abril de 2011

Gente que sabe que o mais importante é manter o estilo em qualquer ocasião



Com a mudança livrei-me dos gritos irritantes das gaivotas que entravam pela janela do meu antigo gabinete. O facto fez parte de uma lista manuscrita onde rabisquei as vantagens de ter sido obrigada a mudar de sítio. A lista fez parte de um processo de convencimento tão desesperado quanto ineficaz. Mas a primavera chegou à minha nova terra. E com ela as andorinhas. E a vantagem do silêncio foi rapidamente anulada pela azáfama destas criaturas esvoaçantes que afinal até são muito mais estúpidas do que aquilo que se pensa. Agora sou distraída pelas permanentes tentativas de suicídio de aves negras que se atiram em voo picado contra a janela fechada do meu novo gabinete. Além disso, quando não estão desmaiadas pela violência do embate contra os vidros, fazem barulho. Um barulho infinitamente mais irritante do que os mios das gaivotas. Um barulho que me faz sentir saudades dos dias em que imaginava várias formas de assassinar gaivotas e vivia confrontada com o problema de saber se, no que respeita ao acompanhamento enológico, gaivota deve ser tratada como carne ou como peixe. As andorinhas não me suscitam esse dilema. Suponho que o mais correcto será acompanhá-las com vinho tinto.

Sem uma perna, com uma muleta, cruzando a ponte

Foi através da inserção destas palavras num motor de busca, vírgulas à parte, que alguém veio ter a este blog. Parece-me uma descrição adequadíssima para me encontrar.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

coretos e altares

… e no coreto que inauguravam naquela tarde de fim de Julho, um conjunto de músicos vestidos de branco tocava um chorinho fresco que lhe sabia a hortelã. gosto que se entrosava na limonada com cacos de gelo disformes servida pelo homem do carrinho quadrado com rodas de bicicleta. o som do pica-gelo contra a pedra gigante que derretia devagar e encharcava o saibro à volta. foi aí que sujou os seus sapatos de sola, que eram novos. já não tinha idade para ir brincar com o irmão e os primos, mas ainda só assistia aos beijos escondidos que o magala dava na sopeira lá de casa. Domingo.

e foi estranho porque, no meio daquela gente toda, apareceu-lhe um rapaz de casaco azul e nariz comprido que, alegando agoniante sede, lhe pediu para partilhar a limonada. no copo, uma só palhinha.

e ela aceitou.

Do merecimento


Há uma amiga que, quando colocada perante os ataques de mau feitio que volta e meia assolam aqui a Estrelita, costuma alertar para a necessidade de cautela quando se pragueja, especialmente envolvendo terceiros.
“Ah e tal, e porque o mal que se deseja pode reverter contra nós. E em dobro.”
“Tudo na vida é uma questão de merecimento.”

Coisas da sua bela avó cabo verdiana.
Coisa para demover qualquer mente temente ao destino, ao karma, à purificação da alma e quejandos.

A Estrelita, sendo uma alma liberta dessa coisa da causa/consequência, quando invadida por uma dessas ondas, deixa-se ir. E tal como as bolhas da tradicional água do vimeiro das garrafinhas verdes, explode e faz arder a língua.
Isto posto, é só para dizer que há por aí umas quantas criaturas que mais podiam era estoirar-se, à séria, e para o resto da vida, de forma lenta e penosa – de maneira a compensar o Universo das alegrias e momentos de felicidade que alguma vez tenham tido.
Apenas, e só, porque é só isso que merecem.
Pronto, `tá dito.

E agora pergunto:
A Estrelita é má e mesquinha? Não, não é.
A Estrelita é vulgar e ordinária? Não, não é.
A Estrelita é invejosa e rancorosa? Não, não é.

A Estrelita acredita no equilíbrio do Universo e gostava de viver numa sociedade verdadeiramente Justa, onde o que se faz, e o que se é, custa a vida que se tem.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

soft & sweet ::: suicide note

o sorriso de um coração sem dono é infinitamente mais triste que a tristeza de um coração viúvo. há uma histeria gritante no segundo de que a serenidade surda do primeiro sente cobiça dolorida.


matei todos os sonhos que tiveram para mim – tenho a casa vazia, deitei-me com mais homens do que aqueles que amei e o que amei de verdade nunca acordou comigo num dia feriado.


eu quero ir-me embora.


os beijos azedam na minha boca. desta vez não chames pelo meu nome, não me peças que fique. esperei a vida inteira por quem nunca me amou e perdi tudo, até o medo.

a esta hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.

para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas essa voz, tu sabes, não é a tua.



os dias foram sempre tão compridos.

e a solidão tão grande.

domingo, 3 de abril de 2011

um progresso é um progresso...

Há motivos racionais e objectivos para a sensação de optimismo que tomou conta de mim. É verdade que ainda não aprendi a fazer bolos. Daqueles grandes, bonitos, deliciosos. Ainda nem sequer tive coragem para comprar farinha e uma batedeira, que presumo essenciais à realização do meu pequeno sonho doméstico. Ainda assim, esta tarde fui dar por mim, feliz e extraordinariamente satisfeita comigo própria, a escolher chávenas de café. Para cúmulo, nem sequer comprei as pretas. Consegui regressar a casa com umas chávenas de flores coloridas. Com a mesma satisfação inimputável, ignorei as coisas importantes que tinha para fazer e destruí duas horas da minha vida, em estado semi-psicopatológico, a desembrulhar as ditas chávenas e a arrancar-lhes os auto-colantes. Por fim, cheguei mesmo ao extremo de fazer um café e de o beber na chávena nova, sentadinha no sofá, a pensar como deve ser bom ser-se uma pessoa normal.

duelos

E na noite em que finalmente tudo acabou, não se tinham passado três mas trinta anos. Eles eram dois velhos. Debruçados sobre uma mesa de jogo. De feltro verde carcomido pelo tempo e pelas traças. Dois velhos. De mãos trémulas em redor de dados de faces gastas. Quem os visse assim curvados, já não saberia dizer, entre o bluff e a batota, qual dos dois tinha marcado mais pontos. Em tempos houve um quadro de scores apontados a giz branco. Mas depois, sem apagador, o quadro acabou por se transformar num caos de vitórias e derrotas de saldo nulo. A uma determinada altura da noite, ela juntou os dados na sua mão, despejou-os na dele e, fazendo um gesto de desistência com os ombros, iniciou os pesados movimentos que anunciavam a sua retirada. O vício, apenas o vício, ainda o levou a ele a puxar de um velho baralho de cartas e a iniciar uma lenta distribuição do jogo pelos dois. Mas ela sabia que, também naquele baralho de cantos desfeitos, há muito que não restava nenhuma dama. Saiu da mesa, condenando-o a uma insonsa vitória por desistência do adversário. Na noite em que finalmente tudo acabou, ela deitou-se, dormiu e fez aquilo que já não fazia há muitos anos.

Sonhou.

No seu sonho, ainda não tinha mãos de velha.

sábado, 2 de abril de 2011

compatibilização de sistemas operativos

Enquanto o computador me transmitia a mensagem “a verificar o software do iphone actualizado” ocorreu-me que poderia igualmente ser o vaticínio de um daqueles bolinhos da sorte chineses. Foi assim que encontrei a tradução do meu próprio estado de espírito. Também eu tenho o raciocínio momentaneamente bloqueado pela necessidade de actualização de software. São os incómodos de se ter uma mente incomparavelmente mais lenta que o coração.