sábado, 30 de maio de 2015

Cuca também dá conselhos para vidas felizes

- Nunca percas o mar de vista. O sal tem propriedades miraculosas na moldagem das almas.
- Tem sempre um plano. Desvia-te dele todas as vezes que forem precisas mas, nesse caso, planeia desviar-te do plano.
- Aprende o valor do tempo. Ficarás protegido contra a mesquinhez.
- Alimenta o teu espírito. Aprende a amar a poesia que é a essência apreensível das coisas que importam.
- Fica sozinho sem fazer rigorosamente nada durante pelo menos dez minutos por dia.
- Não faças nada que envergonhe a tua mãe. Se fizeres, perdoa-te a ti próprio. O relativismo moral foi inventado para auto-aplicação.
- Identifica os teus amigos e ama-os incondicionalmente. A amizade deles absolve-os de qualquer pecado menor.
- Se sofres da doença do ceticismo sobre as qualidades da natureza humana, cria um blog. As pessoas bonitas encontram-se sempre.
- Canaliza as tuas obsessões para a aprendizagem de coisas práticas que sejas péssimo a fazer. Isso manterá ocupado o psicopata que há dentro de ti.
- Não insistas em ser feliz. Não é obrigatório e talvez nunca consigas. A maioria das pessoas não consegue.

Ideia roubada ao Pipoco Mais Salgado.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Os dias da clepsidra avariada



Naquele início de verão as estrelas mudaram de sítio e a terra abdicou da sua forma e ambos aprendemos a linguagem das aves marinhas.
- As que vieram fazer o ninho na parte mais interior dos corações.
Comemos do mar e do céu e as nossas células transpiraram gotículas que eram versos e música e nascentes dos arco-íris duplos que cobriram toda a terra.
Incontáveis foram os lentos ocasos no oceano. E cada um foi uma vida demasiado inteira para que não a tenham também vivido todos os outros homens. 
Não saberia dizer se foram dias, meses ou anos. Lembro-me vagamente de uma clepsidra avariada. O tempo não interessava a ninguém. Foi assim que descobrimos o infalível método para o fazer parar.
Mas uma manhã caiu um longo inverno.
E depois dessa manhã a terra reaprendeu a girar. Lentamente, primeiro. Veloz, depois.
Por baixo dos pés vi o mar tornar-se terra e, em seguida, asfalto.
Os contornos do seu rosto desfizeram-se nos dias. E também a memória reflexa do meu.
Olhei para o pulso e encontrei-lhe um relógio. Sincronizei-o com as batidas da parte mais interior do coração.
- que as aves marinhas deixaram devoluto.  
Neste início de verão, apontam-me um rosto que apenas julgo reconhecer dos sonhos. Garantem-me que é o seu. E que é o mesmo o oceano debaixo dos pés. Mas ouço-o falar e não recordo a língua. Nem os versos. Nem a música.
A lua parece ter encolhido.
Julgo que é assim que se intui que Eva não soube querer regressar ao paraíso.
- Uma clepsidra avariada. Um resto de penas na parte mais interior do coração. 
A doce lenta eternidade do esquecimento.
Um destino demasiado inteiro para que não o seja também o de todos os outros homens.



quarta-feira, 27 de maio de 2015

O mistério do bem

Quando leres a biografia de um grande criminoso, antes de condená-lo, agradece ao céu bondoso por não ter-te colocado, com a tua cara honesta, no começo de uma série de circunstâncias semelhantes.
Lichtenberg

O fracasso (de parte) da criminologia, como ciência, explica-se pelo excesso de otimismo na apreensão da natureza dos seres humanos.
Em vez de despendermos tanta energia a investigar as mais recônditas razões do mal, melhor seria se tentassemos perceber os fundamentos do bem.
O mal é a consequência natural de uma série de atos quase indispensáveis.
É no bem, nas razões que levam as pessoas a procurarem fazer o bem, que reside o último mistério da humanidade.

domingo, 24 de maio de 2015

Diário de Bordo

Deixou hoje o navio o meu ex senhorio, Israelita da Mossad, disfarçado de pacato jovem alentejano da Planície, com quem as coisas nunca são aquilo que parecem, como é timbre natural e indispensável nos membros das organizações secretas que se passeiam por Portugal e ocasionalmente se instalam no litoral alentejano.
Chegou há um ano com a missão assumida de me fazer retornar à Planície e com uma intenção oculta de cariz tão secreto que nunca consegui perceber qual era.  
Embora o tenha desenganado imediatamente quanto à viabilidade dos seus propósitos, já que encontrei na Pirataria a minha verdadeira vocação natural, o rapaz foi ficando, primeiro, com uma sucessão infindável de pretextos, depois, sem qualquer justificação, aproveitando-se abusivamente do facto de me esquecer de as exigir.
A sua estadia foi profícua. Além de coautor de dois ou três planos geniais para assaltar petroleiros (ultimamente especializámos-nos nesta área de, vá, como dizer, negócio) foi o meu par em todas os bailes que fizemos no navio, aproveitando aqui para deixar uma nota claramente positiva a respeito da formação dos agentes da Mossad em tango.
Despedi-me dele ao início da manhã que, de repente e apesar da carência de nuvens no céu, pareceu-me despropositadamente nebulosa. 
- Promete-me que me vais visitar à planície. 
- Estou farta de o avisar que não me deve tratar por tu.
- Não é por mim, é pelos velhos da praça que sentem a tua falta nos jogos de sueca.
- Admita que só quer que eu volte porque o meu regresso satisfaz os propósitos da sua organização... 
- Organização?? Outra vez essa conversa? Eu não sou lá muito organizado. Mas isso de satisfazer, bem... daquela vez em que...
- Não seja tonto! E é melhor que vá rapidamente, que bem sabe como odeio despedidas.

Enquanto o vi sair do navio montado no seu cavalo branco e afastar-se no mar até ser apenas um indecifrável ponto na linha do horizonte, lembrei-me de como, da primeira vez que o vi naqueles preparos, o confundi com um príncipe da Disney. 
No dia em que abandonei a planície fingi esquecer-me, na estante que foi minha, de uma boneca sentada.
Antes de partir, disse-me que a boneca que lhe deixei para que não me esquecesse, continuava sentada, à minha espera.
Respondi-lhe que um dia voltarei para a recuperar. 
Ambos sabemos que é apenas uma daquelas mentiras que são tristes porque todos queríamos que fossem verdade.
Nunca voltarei à planície. Como também nunca voltarei à minha Ilha. Como se diz por aí, e se se diz por aí é porque é necessariamente verdade, nunca se deve regressar ao sítio onde se foi feliz. 
Em contrapartida, terei sempre Lisboa. Essa cidade que tão continuamente me sabe fazer miserável. 







sábado, 23 de maio de 2015

Ground zero



Para te esquecer, talvez fazer como o imperador Sihih Huang Ti: 
Construir uma muralha visível do espaço; queimar todos os livros um dia escritos.
Reiniciar do zero nada menos do que a história da humanidade. 

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Lá vai Lisboa



Lisboa, sobre quem já se convencionou ser mulher e caprichosa, comporta-se comigo como a amante que pressente que em breve será abandonada. 
Nunca é tão envolvente como naqueles dias do ano que antecedem a minha escolha de ainda não voltar.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Anjos



Por outro lado, enquanto ouvia o Adagio for Strings de Bernstein, pensei que pode sempre conjeturar-se serem os Anjos de Swedenborg, retratados por Borges em O Livro dos Seres Imaginários, nada menos do que a face inicial dos Nephilim. 
Pois que outra coisa que não a queda se pode seguir a um idílio feito de almas regidas pelo amor; a quem o céu se oferece na bandeja da livre escolha; cuja matéria é nada menos que a de um ser humano perfeito e o espírito de uma elevação arrogante que prescinde das palavras na comunicação? 
Os Anjos de Swendenborg, deitados nos jardins do éden, qual condomínio privado, desprovido dos pobres de espírito e dos ascetas - excluídos do céu pelo pecado da incapacidade de compreensão dos seus prazeres - só podem ser os antecessores dos Nephilim, os anjos caídos.
Sabe-se de ciência certa que à ascensão se segue a queda e o adágio não será menos verdadeiro quando reportado a uma comunidade regida pelo amor. Mesmo que Anja.
Suspeito, até, que o problema terá começado aqui: "Duas pessoas que se amaram na terra formam um único Anjo"
Borges consegue fazê-lo parecer bonito. Mas, na verdade, é um presságio terrível...






quarta-feira, 20 de maio de 2015

Partilhar a felicidade



Os Demónios de Emanuel Swedenborg (1688-1772) não constituem uma espécie: procedem do género humano. São indivíduos que, depois da morte, escolhem o inferno. Não estão felizes nessa região de pântanos, desertos, florestas, aldeias arrasadas pelo fogo, lupanares e obscuras guaritas, mas no Céu seriam mais desgraçados. Por vezes, um raio de luz celestial chega-lhes lá do alto e os Demónios sentem uma espécie de queimadura e um cheiro fétido. Julgam-se formosos, mas muitos têm rostos bestiais ou caras que são meros pedaços de carne ou não têm cara. Vivem no ódio recíproco e na violência armada; se se juntam, fazem-no para se destruírem ou para destruírem alguém. Deus proíbe aos homens e aos anjos traçar um mapa do inferno, mas sabemos que a sua forma genérica é a de um Demónio. Os infernos são mais sórdidos e atrozes e ficam a ocidente.

Jorge Luis Borges, O Livros dos Seres Imaginários, Teorema.

Muito, muito, muito obrigada, Maria Helena. 

terça-feira, 19 de maio de 2015

Da série: grandes frases que não querem dizer nada

"Se uma mulher não trai, é porque não lhe convém."

Cesare Pavese, in Ofício de Viver, Relógio D'Àgua 

A misoginia dos cultos é ainda mais cansativa do que a dos néscios. 
Não é que grande parte das afirmações de Pavese sejam falsas. É que assentam em premissas rigorosamente aplicáveis a ambos os sexos. 

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Girassol

Vi-te rasgar o azul do céu e dependurares-te pela ponta do pé no trapézio improvisado na cauda do cometa. 
O músculo do coração debaixo da camisa descomposta a impulsionar-te todo o corpo. 
E um girassol a oscilar levemente no reflexo da tua passagem pelo ar.
Vi-te balouçar noite após dia por cima dos fios de eletricidade, àquele nível de altitude a que voam os pássaros. 
As famílias a passearem à tua sombra na hora triste da tarde e a criança com o balão. 
No balanço, o fim é o princípio e o princípio é o fim. 
Vi escapar-se a linha por entre os dedos da mão minúscula e o balão elevar-se na tua direção.
E um girassol que se curva no pressentimento da queda.
Vi o céu cair agarrado à ponta do teu pé. 
Infinita foi a manhã cinzenta que nenhum pássaro jamais quis cruzar. 



domingo, 17 de maio de 2015

Do vídeo das miúdas a bater no miúdo

A sociedade portuguesa, segundo a imprensa, está chocada.
Este noite vão dormir nas cadeias portuguesas cerca de 14 000 presos.
Nos centros tutelares educativos vão dormir mais de 300 jovens a cumprir medidas de internamento.

Chocados com o quê?

Compra-se


sábado, 16 de maio de 2015

How am i supposed to know?


Do verão

No espaço de tempo em que um barco de velas negras cruza o horizonte e a Nina Simone, vinda das colunas penduradas nas palmeiras, faz a sua magia e vou observando o meu pé esquerdo ganhar uma tonalidade castanho-arroxeada, o verão vai-se instalando em mim, como aqueles programas informáticos que nos avisam que há uma instalação em progresso. E eu deixo o verão chegar, sem receio de vírus destruidores de software, porque já longínquo vai o agosto em que todo o solstício foi engolido na chama de uma explosão e o sol e o mar e o azul estilhaços de coisa maior, a arder-me nas veias como veneno.
 E o tempo, como diz o bom povo que sempre tem razão, cura tudo. 

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Não voltarão

96

Um dia pedi a um velho sábio 
que me falasse sobre os que já se foram.
Ele disse: 
Não voltarão. Eis o que sei. 


In, Os Rubaiyat de Omar Khayyam
(Versão de Alfredo Braga, roubada da net)

Sem que antes te mate

Não hei de morrer sem ver-te aproximar à distância.
Salgueiro balançado ao vento norte,
folhas soltas por cima da cabeça,
nuvem vertical a encharcar-me os ossos.

Mas não hei de morrer antes de revisitar o teu rosto,
sentir-te os olhos nas pontas dos dedos,
beber-te os contornos do sorriso torcido.
E engasgar-me de camélias. 

E não hei de morrer sem que antes me mates
com a mesma adaga de coral que enterrei na praia
na noite em que a maré não te devolveu e a lua disse:
- dois miseráveis assassinos.

Matámos os sentidos, a música, os versos.
Escondemos no rio o corpo das memórias.

Vestimos as nossas melhores roupas de domingo
para penhorarmos a alma aos balcões dos agiotas;
Fizemos promessas a deuses pagãos
que cumprimos no escrúpulo dos joelhos no asfalto.

- dois miseráveis assassinos.
Disse a lua na manhã em que a maré não me levou.

Não hei de morrer sem ver-te,
não hás de morrer sem que antes me renasças. 


Exílios

A cronicidade na itinerância deturpa-lhe a natureza, fazendo que com tenhamos de chamar-lhe outra coisa qualquer. Talvez exílio. 
Maio, era o mês em que comprava um mapa do país com dimensão suficiente para que nele coubessem anotações em letra miudinha sobre distâncias e tempos e em que, depois de muitas horas de racionalização sofrida, seguidas por um copo de vinho tinto, escolhia a minha nova próxima terra, preparando-me para abraçar uma incógnita produzida por uma equação composta por iguais partes de razão, emoção e álea. 
Este é o primeiro de muitos maios em que não comprarei um mapa com a finalidade de escolher uma nova terra. 
Sei onde estou, sei onde fica a minha casa e tenho cada quilómetro de distância tatuado nos sentidos. 
Este é também o maio em que estão esgotados todos os pretextos para não regressar a casa.
Indo, terminarei a viagem.
Ficando, trocarei a itinerância pelo exílio. 

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Gráficos

A tua voz a arrastar-se nas vogais.
Foi disso que hoje se ocuparam as minhas saudades.

Da alienação

 Às vezes, nestas horas em que a noite cai assim devagarinho, encosto-me à varanda do convés deste navio, vejo o mar lá em baixo, à minha frente e ao meu lado, ouço o barulho do vento de encontro à bandeira presa no mastro e penso como é bom ser Pirata, viver aqui neste navio rodeada de delinquentes, não ter outra hora que não a do coração, da coragem e da oportunidade do saque, não ter de me levantar amanhã para um dia igual e, sobretudo, não estar sentada numa sala a assistir ao serviço noticiário de uma sociedade doente, em que na última meia hora se filosofou sobre fotografias macabras nos maços de tabaco e o sobre o acordo ortográfico. 

terça-feira, 12 de maio de 2015

Pedir com indiferença

"Porque é que quase toda a gente sofreu uma desilusão de amor? Porque o próprio amor, sobre o qual se lançaram com entusiasmo, devia traí-los - por causa da lei que diz que só se obtém o que se pede com indiferença." 
 In, O Ofício de Viver, Cesare Pavese

Erra por defeito, Pavese. Em matéria de amor, o que diz a lei é que só se obtém aquilo que nos é demasiado indiferente para que o cheguemos a pedir. 

Dos vários Herbertos

Fui à livraria buscar uma encomenda de Paveses. Junto ao balcão, um homem folheava o novo livro de Herberto com a deceção estampada no rosto. Devolveu-o às mãos do livreiro com a expressão de quem sente que o estão a tentar burlar.
- nem parece um Herberto. Não quero isto! Não é um Herberto.
O livreiro coloca o Herberto rejeitado no cimo das minhas encomendas e só depois me pergunta se quero aquele Herberto.
Digo-lhe que sim, que já agora levo. Para saber se é um Herberto.
Ele sorri-me com cumplicidade e pede-me que depois lhe transmita o veredicto.
Entendo por bem avisa-lo:
- se for um Herberto, vou demorar alguns dias até saber se gosto dele. 

"esfolo-te vivo, vadio, se me trazes outra vez versos
                                  desses,
(...)"
Herberto Helder, Poemas Canhotos

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Eva

A lua soltou-se na noite passada. Escorregou e desapareceu do cenário. Uma terrível perda; parte-se-me o coração só de pensar nisso. Não há outra coisa entre os ornamentos e a decoração que seja comprável à sua beleza e acabamentos. Deveria ter sido melhor presa ao céu. Se ao menos a conseguíssemos recuperar...
Mas claro que não há como saber para onde foi. Além do mais, quem quer que a tenha esconde-la-á. Sei-o porque era o que eu própria faria. Acredito que consigo ser honesta noutras coais, mas já comecei a compreender que o coração e centro da minha natureza é o amor pela beleza, a paixão pelo belo, e que não seria seguro confiar em mim com uma lua que pertencesse a outra pessoa se essa pessoa não soubesse que eu a tinha. Poderia abdicar de uma lua que encontrasse durante o dia, porque teria medo que alguém estivesse a olhar; mas se a encontrasse no escuro, tenho a certeza que arranjaria uma qualquer desculpa para não dizer nada a ninguém sobre esse assunto. É que eu adoro luas, acho-as lindas e românticas. Desejava que tivéssemos cinco ou seis; nunca haveria de ir para a cama; não me cansaria de ficar deitada nas dunas de musgo a olhar para elas.

Twain, Mark. “Eve's Diary, Complete.”, versão de Cuca, a Pirata.

Do que vou aprendendo

Não peças a solução a quem é parte do problema.

domingo, 10 de maio de 2015

Tribos

A amizade é uma ciência oculta de misteriosas afinidades. E se ao amado não se lhe exige menos do que a perfeição, ao amigo exige-se-lhe apenas que seja ele próprio.
Perdi-o há dez anos por entre um corredor de suscetibilidades mal esclarecidas e o nevoeiro da indiferença fingida. Deixei-o ir convicta que voltaria depressa e que se não voltasse isso quereria dizer apenas que era melhor que tivesse ido.
Nem ele voltou depressa nem eu construí pontes no seu encalço. Depressa, demasiado depressa, passaram-se dez anos.
Voltou ontem. Igual ao que foi, como sempre acontece quando os laços são nós.
No fundo, voltou na primeira oportunidade, com esse miserável detalhe de a primeira oportunidade ter demorado dez anos a fazer-se.
Só não digo que foi como sempre aqui houvesse estado porque se assim fosse, tenho a certeza, eu teria errado muito menos.
No fim da noite, quando o resto do grupo se reduziu aos mesmos que já éramos, foi-me impossível evitar pensar na evidência das nossas carreiras tão bem construídas sobre vidas pessoais tão mal destruídas.
Mandaram-nos para longe de casa para aprendermos. Mas não estou segura que não tenhamos falhado todos a lição mais importante.
É por isso que voltamos. Ali, uns com os outros, é sempre como se estivéssemos a começar tudo outra vez. E tanta falta nos faz começar tudo uma vez mais.



quinta-feira, 7 de maio de 2015

I will make them dry


Guerras

Um coração pode ser um mapa de fronteiras redefinidas, com alfinetes que se vão movendo ao ritmo dos avanços e recuos da reconquista. 
Mas a guerra que se trava contra nós próprios é a mais estúpida, se não mesmo a mais indigna. 
Não há glória ou orgulho na vitória possível: a que nos mata ou nos aprisiona. 

terça-feira, 5 de maio de 2015

Dos fracassos

Por outro lado, vistas as coisas de uma perspetiva puramente Beckettiana, deveria estar razoavelmente satisfeita comigo própria. Afinal, fracassei ainda melhor desta última vez. 

"Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta outra vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor." 

Beckett 

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Ambas as fontes, a da sombra e a da luz

Como pode uma parte do mundo separar-se do mundo?
Como pode o molhado separar-se da água?

Não tentes apagar o fogo alimentando-o com mais fogo. Não laves a ferida com sangue.

Por mais depressa que corras, a tua sombra mantém-se. Às vezes, corre à tua frente.

Só o sol do meio dia te diminui a sombra.
Mas essa sombra tem-te servido. 

O que te magoa, abençoa-te. A escuridão é a tua vela. As tuas amarras são a tua viagem.

Poderia explicar-to mas partiria o revestimento de vidro do teu coração, e não há como reconstruir isso.

Deves ter ambas as fontes, a da sombra e a da luz.
Ouve, e deita a tua cabeça debaixo da árvore do deslumbre. 

Quando dessa árvore em ti germinarem penas e asas, fica mais quieto do que uma pomba. Não abras, sequer, a tua boa para um murmúrio. 

Versão de Cuca, a Pirata, a partir da tradução para inglês do original de Jalal ad-Din Muahammad Rumi

Dia 2555

Debruçados na varanda de um dos cafés da praça Jemaa el Fna, ventoinha decrépita a esforçar 
-se inutilmente nas costas, chá gelado de menta na mão, olhar perdido na amálgama de encantadores de serpentes, contadores de histórias, vendedores de tapetes mágicos, cestos de vime com especiarias de cores que o arco-íris não inventou, acondicioanados pelo cheiro da vida que ia subindo da praça, ele fez uma promessa.
E num amanhecer no Mar de Mármara, diante do som do chamamento para a oração, Istambul a espreguiçar-se aos pés, com a Mesquita Azul e Santa Sofia como testemunhas, o Bósforo a correr dentro dos seus olhos, repetiu a mesma promessa. 
E nela insistiu num entardecer na Áustria, pendurados num teleférico avariado sobre a imensidão das montanhas, doze graus negativos a queimarem os narizes e nuvens de densidade tridimensional a ocludirem os últimos raios de sol.
E a ela voltou numa ilha da Tailândia, embalados na canoa da noite iluminada pela maior lua de sempre, a areia a insinuar-se prateada muito ao longe e um rochedo imenso a fazer-se frágil diante da solidez das palavras.
E repetiu-a muitas outras vezes. Nos telhados de Barcelona, nos canais de Amsterdão, numa das gôndolas de Veneza, na ponte mais bonita de Paris, por todo um quarto de Lisboa. 
Quebrou a promessa num fim de tarde, a muitos quilómetros de altitude, entre os aeroportos de Barajas e Lisboa.
Faz hoje sete anos. 
Há sete anos que acredito que a coerência cosmológica impunha que aquele avião nunca tivesse chegado ao seu destino. 



domingo, 3 de maio de 2015

Resumo da semana

Mortos. Muitos mortos.
Nunca deixará de me surpreender a persistência dos crentes perante um deus que, obviamente, há muito que os abandonou. 
A meritocracia é antinatural no ser humano. 

O Estranho Caso do Livro que Lia o Leitor - capítulo VIII

E ao retomar o livro, abrindo uma página ao acaso, o leitor chega a tempo de ver o homem do monóculo regressar à mesma sala onde tudo começou. Envolto pela penumbra o homem do monóculo volta a sentar-se à secretária, onde, debaixo dos pergaminhos que deixou espalhados sob a luz do candeeiro, está um pequeno baú de madrepérolas encrustadas. Então, o leitor observa o homem do monóculo retirar de dentro do bolso da jaqueta a chave que trouxe desse apartamento de Moscavide. O homem recosta-se na cadeira, conservando a pequena chave dentro da sua mão enorme enquanto olha para baú, como se hesitasse abri-lo. 
A figura da sua mãe, representada naquela tela que ocupa parte da parede da sala, parece agora maior. Dir-se-ia tão grande que, com a sua presença, enche toda a sala. E é nos olhos dessa mulher que o homem do monóculo lê a ordem póstuma que lhe sustenta a coragem necessária para enfiar a pequena chave na fechadura em forma de caveira e rodá-la de forma decidida.
Expectante, o leitor esgueira-se sobre a página na ânsia de descobrir o conteúdo do baú. 
Mas aberto, o baú é apenas um espelho. 
E ao iniciar a leitura da frase seguinte, o leitor depara-se com o terror no seu próprio rosto espelhado no interior do baú de madrepérolas incrustadas.

(Peço o IX ao Pipoco Mais Salgado)

Capítulo I - Palmier Encoberto
Capítulo II - Xilre 
Capítulo III - MD Roque 
Capítulo IV - G
Capítulo V - Outro Ente 
Capítulos VI - Luísa 
Capítulo VII - Mirone
Capítulo IX - Pipoco Mais Salgado 
Capítudo X - Lourenço Brey