De manhã comprámos margaridas.
Pela tarde plantámo-las no canteiro grande do jardim.
À noite morreu Kierkegaard, o cão Pirata.
Morremos de faces encostadas e pata na mão, como se deve morrer no amor e na guerra.
Morremos ambos, porque uma parte de mim morreu com ele. Talvez a melhor. Os livros nada ensinam sobre o sofrimento que é perder um cão e os amigos distraídos levantam o sobrolho e dizem “mas calma, é só um cão”.
Mas não é só um cão.
É Kierkegaard, o cão Pirata. Testemunha de significativa parte da minha vida. Companheiro de aventuras. Inimigo do leão que surge no início dos filmes da MGM; do secador de cabelo; do aspirador; dos limpa-parabrisas; da chuva e de todos os jardineiros deste mundo.
Cão melómano, fã de Puccini e da Madame Butterfly. Ouvinte dedicado das minhas tardes de piano, junto do qual gostava de se deitar, para depois levantar a cabeça em protesto aquando das falhas mais críticas.
Feroz guarda da porta para onde corria, com as unhas sempre demasiado compridas, a baterem de encontro ao soalho.
Parceiro de sofá e aquecedor biológico nos dias mais frios.
Patrão, escravo e amigo.
Quase de certeza, a minha única relação verdadeiramente desinteressada.
A casa aumentou de tamanho.
O silêncio é uma noite contínua.
O meu colo ficou vazio.
Sou uma mulher-sem-cão.
Morreu Kierkegaard, o cão Pirata!
Batam em latas ou mandem tocar todos os sinos de todas as igrejas.
Morreu o meu melhor amigo!