sábado, 9 de abril de 2016

Praia

A outra ocupante da praia está a vinte metros de distância, deitada, vestida e calçada, sobre uma toalha desfiada por vários verões. Tem uns phones que parecem protege-la do mundo. Desde que cheguei não dirigiu um único olhar na minha direção. Canta alto, na sua esplêndida voz de negra, indiferente à minha presença, canções que desconheço. 
Descalço os ténis e observo os dedos dos pés que parecem ter encolhido. Enterro-os na areia para afastar este pensamento. Ao fundo há um veleiro que desliza lentamente até ficar escondido por uma rocha. Um dia, o mar não terá nenhum nome tatuado e eu poderei descansar a memória junto às ondas. E também este pensamento afugento, agora, com uma página da revista. A mulher move-se. Apoia a cabeça no braço esquerdo e continua a cantar. Devolvo-me à minha revista mas sei que depressa encontrarei outro pensamento que serei obrigada a expulsar. O ócio obriga-me a uma atividade intelectual extenuante. Dói-me a cabeça. Tenho calos nas dedos à força de tanto varrer pensamentos incómodos. Volto a olhar para aquela mulher que canta como se só ela existisse na praia e tenho certeza que não está a pensar em nada. 
E eu invejo-a, com o tipo de inveja mesquinha que é a matriz do ódio e da doença. E esqueço o sol, a areia nos pés, o veleiro que desapareceu atrás da rocha, todos os nomes, a revista. 
Somos só eu, uma mulher que canta e a minha inveja. 

4 comentários:

  1. já vi que hoje partilhamos o mesmo sentimento.

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  2. Juro que a minha fila acabou de dizer:

    "Tenho o nariz a pingar e os dedos dos pés a mirrar"

    Será que isto é contagioso? Que em breve vamos todas calçar o 32?

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    1. A cientista que há em mim pensa que pode ser um vírus espalhado nas praias algarvias. E acrescento que o meu nariz também está a pingar.

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