segunda-feira, 30 de novembro de 2015

The Broken Man


Meio sono e má refeição

Nada como em Goethe, onde a boa e velha inquietação, de esmerada educação, faz-se assim anunciar:


Se o ouvido por mim não der, 
No peito me faço ouvir; 
Formas várias assumindo
Exerço um poder tremendo.
Nos caminhos, sobre os mares,
Companheira de terrores, 
Nunca querida, sempre achada, sou temida e detestada.
(...)
Aquele em quem eu me afundo, 
De nada lhe serve o mundo; 
Vive em treva permanente, 
Sem aurora nem poente, 
Por fora normal parece, 
Dentro dele tudo escurece, 
Os maiores tesouros que há, 
Frio, ele os desprezará.
Cisma em sorte ou desventura, 
Morre à míngua na fartura;
Coisa má ou alegria
Fica sempre para outro dia;
Só no futuro a pensar, 
Nunca nada há-de acabar.

Fausto, Goethe, Relógio D'Água 

domingo, 29 de novembro de 2015

Pessoas que partem

Conheci a minha verdadeira natureza na tarde em que voltei as costas à terra para, deixando tudo para trás, nadar na direção de um barco à deriva no mar. 
Naquela tarde, percebi as pessoas que partem.
O mundo está cheio de gente que um dia desaparece, não para reaparecer morta por entre veredas mas para existir livre noutra forma de existência. 
São pessoas que viajam em negócios e subitamente nunca regressam. Gente que entre o emprego e as tarefas domésticas faz um pequeno desvio que se torna eterno. Seres que uma noite, em silêncio, diante do olhar atónito dos outros, escolhem uma muda de roupa e simplesmente fogem para não mais voltar.
Se lhes perguntarmos as razões, não saberão explicá-las. É mentirosa qualquer tentativa de racionalização. São pessoas que partem. Poderão fazê-lo uma e outra vez.
Várias horas depois fui devolvida à terra contra a minha vontade e pude impunemente prosseguir a minha existência no ponto em tentei abandoná-la.
Naquela tarde, não sem desgosto, compreendi que também eu sou uma dessas pessoas que partem. 

Às vezes, o amanhecer ainda me surpreende dentro de um barco à deriva no mar. E, ao acordar, pesa-me, insuportavelmente, tudo quanto me pertence.

Roubos

Novembro passou sem marca. É de outubro este monte de livros que acumulo do meu lado esquerdo. É também de outubro o poema que o marcador suspende na linha do horizonte. E é de outubro o último por do sol; o rasto da espuma das ondas; essa especial forma de silêncio que há no mar.
Diz-me a clepsidra avariada que aquilo que menos importa consumiu-me no mês de novembro mais de noventa por cento das minhas horas.
Roubaram-me o mês de novembro.


segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Remorso por qualquer morte

Já livre da memória e da esperança,
quase futuro, ilimitado, abstracto,
não é um morto, o morto: ele é a morte.
Como esse Deus dos místicos,
de Quem devem negar-se os predicados,
o morto ubiquamente alheio
é só a perdição e ausência do mundo.
Roubamos-lhe tudo,
não lhe deixamos uma cor nem uma sílaba:
é este o pátio que os seus olhos já não partilham
e aquele o passeio onde perscrutou a sua esperança.
Até o que pensamos poderia ele pensar;
repartimos por nós como ladrões
todo o caudal das noites e dos dias.

Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires, Obras Completas, I, Teorema.

domingo, 22 de novembro de 2015

Laços

De pulsos enlaçados.
Voar.
Nas asas de Bernstein.

Já não se escrevem cartas de amor

Não sei quando foi que aconteceu. Não é o tipo de coisa com que numa manhã de, por exemplo, segunda feira, se acorde colada ao rosto depois de uma noite mais ou menos insone. 
Começámos todos por deixar de escrever cartas de amor. Talvez por termos lido nas cartas dos poetas um amor que julgámos maior do que o nosso, sem perceber, contudo, que foram as palavras que lhe deram a substância do crescimento. Talvez por termos pensado que as letras sobreviveriam ao sentimento, tatuando-o no vazio, sem perceber, contudo, que não há sensação alguma que não seja eterna. 
Depois de o termos deixado de escrever, deixámos igualmente de dizer o amor. Entregámo-nos à ingrata omissão como devotos desassumidos de todo um sistema filosófico assente na antinomia da força e da fraqueza. Pronunciávamos as palavras e pareciam-nos absurdos pastiches de novelas mexicanas de som desconectado da imagem. Éramos menos vulneráveis e mais inteiros se silenciássemos qualquer rasto da nossa humanidade. Tratámos os amantes como inimigos e eles declararam-nos uma guerra em que o vencedor era aquele que se tivesse apropriado de toda a indiferença. 
Foi mais ou menos por essa altura que o choro caiu em desuso. Agora já ninguém se lembra da coragem que era necessária para exibir perante os outros um rosto bem lavado pelas lágrimas. 
Por fim, não escrito nem dito, o amor tornou-se inútil como um segredo embrulhado na naftalina do armário. Deixámos, pois, de o sentir. Foi a fase do darwinismo sentimental.
Estudámos-lhes a composição química para memória futura. Tratámos os últimos doentes com benzodiazepinas e detalhadas explicações científicas sobre a natureza imbecil do seu estado. 
O amor é, agora, uma inofensiva ampola guardada num laboratório secreto.
Não é um lamento. Nunca gostei do amor. 
É a nostalgia da falta das cartas de amor que me aborrece profundamente. 

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Still


Neverness

Estamos onde sempre estivemos.
Rasgámos incontáveis dias no calendário e é sempre agora. Impusemo-nos a longínqua distância do oceano e é sempre aqui. 
Nenhum tempo, nenhum quilómetro, soube libertar-nos das fronteiras do aqui e do agora. 
Usei o tempo passado para escrever a nossa história. Sem saber, ainda, que registava um terrível presságio de eternidade. 

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Dear Angel



Insistem em lembrar-me que as pessoas respondem melhor a estímulos positivos. É uma tese que acolherei de braços abertos no dia em que a experiência deixar de me atirar o contrário à cara, com a violência contida na expressão "pano encharcado pelas trombas acima", cujo autor, que desconheço mas que é dos bons e possivelmente da margem sul, tem invejável capacidade de apelo a sensações físicas. Só não reconhece a maravilha quem nunca se esforçou por conseguir semelhante. 
Assumo, no entanto, que, em matéria de anjos da guarda, as regras gerais da experiência comum não tenham aplicação. Não estudei o regulamento do paranormal e suspeito que nem sequer exista. Essas organizações parecem-me cada vez mais imperfeitas, obscuras e desigualitárias.
Ofereço-te esta música com propósitos declaradamente interesseiros. É tempo de abandonares as palmeiras do Éden, debaixo de cuja sombra, com tanta persistência, te tens dedicado ao aprofundamento da filosofia da não intervenção, ao apego ao maléfico engodo do livre arbítrio e ao macabro hobby da observação de descarrilamento de comboios. Não és um fotógrafo da National Geographic. És um anjo da guarda. Salvar o panda bébé é o teu trabalho. Eu sou o panda bébé. 

domingo, 15 de novembro de 2015

Ana amava Bruno que amava Carlota que amava Diogo que amava Eduardo

Foi uma cerimónia de indiscutível bom gosto. 
A noiva, sóbria e elegante, por entre camélias, a atravessar a nave da igreja, enfeitada por um sorriso distinto coberto pela mantilha de uma bisavó de sangue azul. A distinção do sacrifício, pensou Bruno quando a noiva passou por si de olhos menos brilhantes do que na véspera, concentrada em não o ver. Procurou reprovação no olhar de Carlota que, protegido pelo enorme chapéu, conseguiu não ser surpreendido em plena atividade desdenhatória, caído sobre a figura esguia de Eduardo.
O padre, o mesmo que os tinha batizado a todos, tradição que sempre acompanha as mantilhas das bisavós de sangue azul, fez uma pausa de três segundos depois de perguntar se havia ali alguém para se opor ao casamento. 
Mas Bruno olhou para chão, perante o desgosto de Ana, a indiferença de Carlota, o reacender da vaga esperança de Diogo em livrar-se desta última e a figura esguia de Eduardo que, oportunamente, consultava o relógio.
Com o alívio das coisas concretizadas, que é comum ao bem e ao mal, todos ficaram a saber que não havia ali ninguém para se opor ao casamento.
E foi assim que, sem alternativa, o casal saiu unido por entre as mesmas camélias na direção de um perfeito céu azul em cambiantes de prata.
Xavier, ao menos, era um noivo genuinamente feliz.
Os homens não imaginam aquilo que algumas mulheres são capazes de fazer por um pouco de sossego. 

sábado, 14 de novembro de 2015

a verdadeira história da eternidade


O tempo abandonou-nos há mais de mil e uma manhãs. Foi ainda ontem que sentada no Olimpo pousei a fronte na tua clavícula e tu semicerraste os olhos e nesse instante de distração largámos o destino dos homens e eles esqueceram-se de nós. A gruta de Altamira onde, entre sombras, com o nosso próprio sangue, registámos o amor, tanto pode ter acontecido há milénios atrás, como poderá ser o nosso futuro distante. Não estou certa que não sejamos os corpos unidos de uma mesma múmia que me lembro de ter visto num egito muito antigo. Esperei-te quando partiste para muitas guerras. Lavaste-me dos cabelos a febre da peste. Os nossos dedos entrelaçados são fósseis de Pompeia. Fui Eva e Lady of Shalott e Ofélia e Karenine e ainda Laila. 
És todos os homens e foi para ti que os deuses inventaram a música.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Percorrendo os céus, sentado na cauda de um cometa

Abriu e fechou as mãos um par de vezes e ficou parado a contemplar os dedos compridos, assim esticados, na humidade gelada da noite.
Depois, começou a correr.
Ao fundo, estava a cidade e as suas luzes que não a tornaram menos cinzenta. Nunca a cidade lhe pareceu tão opressora como no último dia em que a viu. Impossível lembrar-se do cinema onde o seu pai o levava para o distrair das desajustadas angústias cosmológicas de criança; das ruas por onde passeou de mãos dadas com alguma mulher que por instantes amou; da livraria onde ao acaso abriu a página que lhe deu a conjugação de letras do que veio a ser o seu melhor poema; daquela cave onde ensaiou acordes na guitarra com a banda punk rock da adolescência. Impossível lembrar-se do que o poderia ter salvo.
Também não se lembrou de nós, que o matámos de tédio, insultando-lhe a esperança para além da reserva com as nossas cozinhas equipadas, os nossos projetos de felicidade burguesa e os resorts onde nos internávamos nas férias. A estupidez crescente, a miopia que se agarra à necessidade de sobrevivência, o definhamento da alma, penso, às vezes, foram a minha contribuição pessoal para o combustível de que se alimentaram as chamas do incêndio que se formou nas suas costas. Porque, percebo-o agora, era como estar parado no meio de um incêndio que ameaçava consumir-lhe a carne ou como respirar o fumo espesso que faz doer os pulmões. 
Apesar do frio, o sangue ferveu-lhe na excitação e no esforço da corrida. 
Treinou aquele número demasiadas vezes para que a execução fosse menos do que perfeita. Parou durante trinta segundos para engolir o ar com a avidez com que engoliu a vida. 
Olhou para o céu. Encontrou o cometa. Saltou ao seu encontro.
Na cauda do cometa, ainda, o rasto das chamas de que se libertou. 

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A viúva da liberdade

Não poupa na quantidade dos cravos. Todos os sábados enche três jarras de cravos vermelhos depois de em lentidão concentrada de nano ciência limpar o mármore da campa. O semblante, diz quem vê, é dessa tristeza antiga que não trai nota de melancolia. O processo consome-lhe uma invariável meia hora semanal. Já não se lembra, talvez nunca se tenha recordado, da visão do tecto da cozinha a partir do chão quando ele a derrubava a murro e pontapé nas noites em que uma desobediência no trabalho ou uma quezília na taberna, tanto fazia, lhe tornavam insuportável  a nódoa de gordura no fogão, o excesso ou falta de sal na sopa, a ausência do filho adolescente ou, na falta de qualquer uma destas coisas, o reacender do velho rastilho já apagado por uma semana menos pior.
Chorou-o no funeral mas apenas porque as vizinhas são a mais eficiente instituição de controlo moral de qualquer sistema reacionário. Em privado, nem uma lágrima.
No dia seguinte, coberta de luto, foi a uma loja da cidade e mandou entregar em casa a televisão que ele nunca autorizou que a família tivesse. Por cima, para que ele soubesse, pendurou-lhe o retrato. Nunca mais falou sobre ele. Nunca mais quis um homem. Criou o filho sozinha com dificuldades de viúva pobre. A magra pensão de viuvez nem sempre garante a carne sobre a mesa. Mas o que não pode faltar são os cravos vermelhos. Três jarras cheias.
Como bom anticomunista o falecido odiava cravos.
Uma pobre viúva tem o inalienável direito à sua pequena vingança.

Da vergonha alheia

O portuguesinho, xenófobo e ignorante até à medula, parece ter sofrido um choque ao ver chegar uma refugiada que teve a ousadia de se apresentar da forma como se veste todos os dias. De nicab. O portuguesinho, é claro, por não saber onde é a Síria e já há muito se ter libertado do invasor muçulmano, estava convencido que da Síria viriam eslavas de mini-saia e saltos agulha. O portuguesinho esperava que o estatuto de refugiada da senhora de nicab, ao menos, a levasse à gratidão de não lhe incomodar a xenobofia, apresentado-se ao mundo como provavelmente nunca na vida pós púbere se apresentou aos seus amigos.
O portuguesinho é iletrado, nunca viajou e ainda por cima é esquecido. Se soubesse ler, saberia onde fica a Síria. Se viajasse, não perguntaria como podem estas senhoras ir ao banco, ou ao médico ou às lojas, pois já as teria visto em Londres, em Paris e em Madrid. Se não fosse esquecido ocorrer-lhe-ia, por exemplo, que a sua bisavó lá da província, usou a vida inteira um lenço na cabeça e não o tiraria por coisa nenhuma. 
O portuguesinho está cheio de medo. 
E não merece receber refugiados. 
Para fazer o que é certo, é necessária muita coragem.

sábado, 7 de novembro de 2015

Quanto do que somos é nosso

António sonhou que já não cabia na cama de grades de ferro pintado de branco da sua infância. Parecia-lhe que a cabeça era empurrada de encontro às grades pela dimensão de um corpo desmesurado. Quando abriu os olhos na noite não encontrou o azul das paredes do quarto de criança. Nenhuma nuvem sobre o seu lado direito. Percebeu que estava ligado a uma máquina de desfazer nuvens pelos fios que lhe saiam do nariz.
Uma semana depois saiu do hospital e entrou numa casa que juraria nunca ter visto. Uma mulher e uma filha seguravam-lhe as mãos e olhavam-no, expectatantes da epifania do reconhecimento. A peça que dá sentido ao puzzle estava escondida em qualquer outro canto do seu passado.
Ficou sentado numa poltrona de pele puída, a sua, garantiam-lhe as duas desconhecidas, perdido nas fotografias  que lhe impingiam, sempre com o mesmo ar de desconfiança. Mas não podia ser ele aquele que pousava em frente da secretária metálica de um gabinete triste com uma parede decrépita enfeitada por uma reprodução de um ramo de rosas. E também não podia ser ele, mascarado de noivo, ao lado daquela mulher suplicante, os dois encerrados num horrível por-do-sol dos anos oitenta. Menos ainda o homem estagnado em frente a um jardim madrileno, olhar assustado, garota erguida nos braços, a antiga noiva mascarada de esposa.
Lembrava-se do quarto da sua infância. De vinhas a perder de vista. De um rio onde pescava trutas com os amigos. Da voz da mãe a ecoar pelo crepúsculo quando se esquecia de regressar a casa. De uma bicicleta encarnada e de nela descer o monte de braços abertos e pernas esticadas. 
Lembrava-se de si, percebeu com horror, apenas até ao exato ponto em que deixou de escolher. Tudo o que o destino atropelou em si, perdera-se naquela mesa de operações onde lhe abriram o cérebro. 
António estava aprisionado numa existência que, sabia-o agora, jamais poderia ter sido escolhida por si.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Carta aberta ao Ruben Patrick

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Diário de bordo

Os meus problemas existenciais, não necessariamente novos mas invariavelmente cíclicos, estão a afetar o desempenho da missão que recai sobre os ombros encorpados desta brava tripulação pirata. 
Tudo começou com a chegada de outono que, de acordo com o calendário oficial da somatização, é a época da nostalgia. 
Dei por mim a substituir o reggae por aquelas musiquinhas nerd que o iTunes classifica como alternativas; a adormecer  mais vezes ao lado de Kafka do que de Borges; a preferir o vinho tinto ao gin tónico e, com a aproximação do pico da estação, a passar mais horas pendurada no convés, com um olhar estrelido e demente, do que no topo da mesa de reuniões a planear ataques a navios de cruzeiro cheios de velhinhos nórdicos.
Num micro cosmos com as potencialidades absorventes deste navio, a osmose é um facto mais científico do que as leis da Murphy. (Dirão que essas não são científicas mas experimentei todas e posso assegurar que estão enganados).
Foi assim que, quando dei conta, tinha a tripulação inteira no limiar da depressão clínica. 
O primeiro a fazer-me notá-lo foi o papagaio Polly que, por passar demasiado tempo com Álvaro de Campos, começou a esvoaçar pelo navio enquanto gritava 

"Não sou nada. 

Nunca serei nada. 
Não posso querer ser nada. 
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
Foi então que reparei que o grupo dos poetas produziu tanto nas últimas semanas que o stock de papel higiénico ameaça ruptura. 
Os bloggers residentes, por seu turno, atacados pela nostalgia, começaram a escrever post fofinhos e a acumular um perigoso banco de imagens de gatinhos de olhos tristes. 
Os ex-presidiários estão há dias encerrados nas suas camaratas, a reviver os tempos de reclusão.
Andhriminir, o cozinheiro pirata, parece ter perdido todo o interesse pelo sadismo e serve-nos saladas com bagas de gojji, ou lá como se diz, porque diz que leu um dos meus livros de ética e descobriu que os animais são pessoas não humanas.
Gualtiero, o Italiano, que está neste navio em representação dos amantes abandonados, passa as horas a jogar candy crush e não tenta conquistar ninguém há mais de vinte e quatro horas.
Em suma, a nostalgia atacou-nos pelas costas com efeitos mais dramáticos do que o temido escorbuto ou a febre dos mares. 
O culpado é o outono e é minha intenção  combater o mal de forma drástica:
Amanhã rumaremos às Caraíbas.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Adotar um deus

Se a tua voz no fundo da sala me  amordaçasse ao silêncio, se o teu perfume se impusesse na omnipresença dos dias, se uma pequena falha entre o terceiro e o quarto dente se tornasse subitamente notável, se as imperfeições que te tornam gente se sentassem à mesa comigo e se alimentassem de comida pré cozinhada, seria possível acender a fogueira do desprezo e varrer as frias cinzas da véspera. Como assim não é, empresto-te a dignidade do bronze, a altivez da estátua grega, a grandeza de um Aquiles de calcanhar remendado pela agulha da complacência. 
Não há nesta mitologia contratada nada de condenável. 
São muitos aqueles que jurariam que um deus lhes faz mais falta do que um amante.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Traças

Com honra morre - diz Cio-Cio-San, no terceiro ato, pouco antes do harakiri mais famoso da música clássica - quem não pode continuar a viver com honra.
Ao contrário da Madama, encontrei a terceira via. Essa que atravesso de joelhos, coberta pelo imperturbável manto negro feito do brocado da viuvez. 
Morreres-me, foi a forma que encontrei de preservar a honra e a vida. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Finalmente caiu a noite

Essa hora em que, 
finalmente,
cai a noite, 
derrama-se a clepsidra, 
calam-se as fúrias, 
fecha-se o verso. 

O silêncio 
das primaveras na jarra e
das paredes brancas e
do perfume e
dos livros e
das notas do piano 
na sala onde nenhum espelho. 

Essa hora em que, finalmente, cai a noite sobre um dia com demasiadas horas.


domingo, 1 de novembro de 2015

Novembro


Por mais que tenhamos falhado em manter acesa a chama da vela durante a fria chuva de novembro, 
Nada é para sempre,
Nem sequer a fria chuva de novembro.