sexta-feira, 29 de maio de 2015

Os dias da clepsidra avariada



Naquele início de verão as estrelas mudaram de sítio e a terra abdicou da sua forma e ambos aprendemos a linguagem das aves marinhas.
- As que vieram fazer o ninho na parte mais interior dos corações.
Comemos do mar e do céu e as nossas células transpiraram gotículas que eram versos e música e nascentes dos arco-íris duplos que cobriram toda a terra.
Incontáveis foram os lentos ocasos no oceano. E cada um foi uma vida demasiado inteira para que não a tenham também vivido todos os outros homens. 
Não saberia dizer se foram dias, meses ou anos. Lembro-me vagamente de uma clepsidra avariada. O tempo não interessava a ninguém. Foi assim que descobrimos o infalível método para o fazer parar.
Mas uma manhã caiu um longo inverno.
E depois dessa manhã a terra reaprendeu a girar. Lentamente, primeiro. Veloz, depois.
Por baixo dos pés vi o mar tornar-se terra e, em seguida, asfalto.
Os contornos do seu rosto desfizeram-se nos dias. E também a memória reflexa do meu.
Olhei para o pulso e encontrei-lhe um relógio. Sincronizei-o com as batidas da parte mais interior do coração.
- que as aves marinhas deixaram devoluto.  
Neste início de verão, apontam-me um rosto que apenas julgo reconhecer dos sonhos. Garantem-me que é o seu. E que é o mesmo o oceano debaixo dos pés. Mas ouço-o falar e não recordo a língua. Nem os versos. Nem a música.
A lua parece ter encolhido.
Julgo que é assim que se intui que Eva não soube querer regressar ao paraíso.
- Uma clepsidra avariada. Um resto de penas na parte mais interior do coração. 
A doce lenta eternidade do esquecimento.
Um destino demasiado inteiro para que não o seja também o de todos os outros homens.



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