domingo, 24 de maio de 2015

Diário de Bordo

Deixou hoje o navio o meu ex senhorio, Israelita da Mossad, disfarçado de pacato jovem alentejano da Planície, com quem as coisas nunca são aquilo que parecem, como é timbre natural e indispensável nos membros das organizações secretas que se passeiam por Portugal e ocasionalmente se instalam no litoral alentejano.
Chegou há um ano com a missão assumida de me fazer retornar à Planície e com uma intenção oculta de cariz tão secreto que nunca consegui perceber qual era.  
Embora o tenha desenganado imediatamente quanto à viabilidade dos seus propósitos, já que encontrei na Pirataria a minha verdadeira vocação natural, o rapaz foi ficando, primeiro, com uma sucessão infindável de pretextos, depois, sem qualquer justificação, aproveitando-se abusivamente do facto de me esquecer de as exigir.
A sua estadia foi profícua. Além de coautor de dois ou três planos geniais para assaltar petroleiros (ultimamente especializámos-nos nesta área de, vá, como dizer, negócio) foi o meu par em todas os bailes que fizemos no navio, aproveitando aqui para deixar uma nota claramente positiva a respeito da formação dos agentes da Mossad em tango.
Despedi-me dele ao início da manhã que, de repente e apesar da carência de nuvens no céu, pareceu-me despropositadamente nebulosa. 
- Promete-me que me vais visitar à planície. 
- Estou farta de o avisar que não me deve tratar por tu.
- Não é por mim, é pelos velhos da praça que sentem a tua falta nos jogos de sueca.
- Admita que só quer que eu volte porque o meu regresso satisfaz os propósitos da sua organização... 
- Organização?? Outra vez essa conversa? Eu não sou lá muito organizado. Mas isso de satisfazer, bem... daquela vez em que...
- Não seja tonto! E é melhor que vá rapidamente, que bem sabe como odeio despedidas.

Enquanto o vi sair do navio montado no seu cavalo branco e afastar-se no mar até ser apenas um indecifrável ponto na linha do horizonte, lembrei-me de como, da primeira vez que o vi naqueles preparos, o confundi com um príncipe da Disney. 
No dia em que abandonei a planície fingi esquecer-me, na estante que foi minha, de uma boneca sentada.
Antes de partir, disse-me que a boneca que lhe deixei para que não me esquecesse, continuava sentada, à minha espera.
Respondi-lhe que um dia voltarei para a recuperar. 
Ambos sabemos que é apenas uma daquelas mentiras que são tristes porque todos queríamos que fossem verdade.
Nunca voltarei à planície. Como também nunca voltarei à minha Ilha. Como se diz por aí, e se se diz por aí é porque é necessariamente verdade, nunca se deve regressar ao sítio onde se foi feliz. 
Em contrapartida, terei sempre Lisboa. Essa cidade que tão continuamente me sabe fazer miserável. 







12 comentários:

  1. Alentejo da minha alma, tão longe me vais ficando.

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  2. Querida Cuca, a Pirata,
    Deduzo, pois, que a escolha é definitiva. Pobre boneca esquecida...
    Bons mares e melhores saques, para saciar a espera pela verdade.
    Um beijo,
    Outro Ente.

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    1. Aquele grau de definitividade (relativo) que é possível entre humanos.

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  3. alentejo litoral e lisboa, querida Sô Dona Pirata... ricas companhias, que só dão em desgraça. quem sabe não nos encontraremos um dia, na fila frente à igreja dos anjos? tratá-la-ei com a devida deferência:

    O CAPTAIN! my Captain! our fearful trip is done;
    The ship has weather’d every rack, the prize we sought is won [...]

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    1. Não sei algum de nós dois era pessoa para ser vista na fila, em frente à igreja dos anjos. Mas lá que tenho as minhas desconfianças, tenho...

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    2. era noodles que chegue para isso. há quem aguarde por príncipes, eu reservo-me para uma maria madalena que me lave os pés.

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  4. Minha querida Pirata, depois de ter nascido na imensidão do mar de terra só poderia encontrar algum significado para a sua existência no da água. Não se engane, mar é mar, e um dia poderá bem desfraldar as velas noutras imensidões.

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    1. Meu querido anónimo mauzão, existirão sempre uma ou duas ilhas desertas.

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  5. Lucky Lukes montando Cavalos Marinhos, mais velozes do que as sombras por onde se meandram... era de arriscar, Capitã ! O que não cheira a adrenalina convence pouco. Eu cá armava-me em Rantanplan e Aioóóó Siver!!

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    1. M D Roque,
      E ficaria linda, a minha amiga, a atravessar os mares montada na guarupa do cavalo marinho, abraçada a um lucky luke, príncipe da Disney.

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    2. Os príncipes da Disney nunca fizeram o meu estilo. São do mais andrógino e querubinesco que há... e toda a gente sabe que homens tão bonitos como as mulheres são homens bonitos demais para serem levados a sério, Capitã...

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