quinta-feira, 11 de julho de 2019
Canícula
Deitada no chão do quarto, absolutamente imóvel, como se temesse acordar o calor para uma birra nocturna, absolutamente imóvel, deitada no chão do quarto, ocorre-me que no alto mar o calor não se atrevia.
segunda-feira, 8 de julho de 2019
Um doce desassossego
Ouve: em primeiro lugar, sentimos uma coisa a mexer dentro de nós, um doce desassossego; depois, uma a uma, vão voltando as recordações, como os pombos-correios. De noite palpitam nos nossos sonhos, de dia voam connosco nos nossos giros e rodopios. Sentimos falta de saber, uns pelos outros, aquilo por que passámos, de comparar observações e de ter a certeza de que foi tudo verdade, é dessa maneira, os cheiros, os sons e os nomes de sítios já esquecidos voltam gradualmente à nossa memória e fazem-nos sinal.
In, O Vento nos Salgueiros, Kenneth Grahame, Tinta da China
In, O Vento nos Salgueiros, Kenneth Grahame, Tinta da China
Detalhes da vida doméstica de uma Pirata desembarcada
O mar ainda me corre nas veias e as ondas balouçam-me nos ouvidos, mas debaixo dos nossos pés há já longos dias que só há terra.
A velha chaise long do convés vive agora num burguês jardim de magnólias, daqueles que combinam pérgolas com barbecues e é deitada nela que, nas horas lentas, confirmo a superioridade literária dos russos. Num dos baús, trouxe Polly, o papagaio pirata, que agora se balouça feliz e sedentário no topo de uma yuca.Trouxe também a velha bandeira que o Capitão Strut me deixou pendurar num daqueles veleiros de betos que, noutros tempos, não hesitaria em bombardear.
Quando o Capitão Strut quis saber do meu índice de felicidade, lamentei-me pela falta das estrelas, assassinadas nas luzes das cidades. Strut saiu por dez minutos e regressou com uma caixa de luzes comprada nos chineses. Tenho uma constelação instalada no céu deste jardim e devo dizer que nunca Orion me pareceu tão verdadeiro.
Aprendi, também, que ao contrário do mar, que por natureza é um caminho, a terra, esse destino, dá-se em pertença.
Na terra
Navegámos durante muitos dias e várias foram as luas que nos iluminaram o rasto.
Guiámo-nos pelas estrelas; pela força dos ventos e por mapas caducados.
Por fim, pisámos a terra.
Enterrámos as espadas. Construímos a morada. Pagámos as dívidas. Virámos o rosto para o pôr-do-sol. Sobrevieram o silêncio e a paz.
quarta-feira, 8 de maio de 2019
marmelada de banana; bananada de goiaba; goiabada de marmelo; Sítio do Pica-pau Amarelo
Veio o amor e tem os seus olhos.
São olhos grandes e quentes, daqueles que abarcam o
Mundo num viés distraído e o fazem, ao Mundo, estremecer um pouco, de espanto e alegria.
Libertei Eros, a criança assassina que mantive aprisionada na cave, e o pequeno Deus, desta vez, não me destruiu a sala de estar.
Chegaram o outono e a primavera e retornará o verão, essa estação de onde vieram todos os dias de todas as outras estações.
Daqui de onde vos escrevo, o mar é profundo e as correntes são de aço. Mas as ondas são mansas e pode-se dançar ou dormir no seu embalo.
Cumpro todos os dias, escrupulosamente, o caderno de encargos da felicidade.
Cumpro todos os dias, escrupulosamente, o caderno de encargos da felicidade.
domingo, 23 de dezembro de 2018
Estrela do Norte
És a madrugada que atravessa a noite negra
e ilumina a face mais sombria do meu ser.
És o sol de inverno que do alto se alquebra
e os meus pés nus vem na manhã aquecer.
E és o vento sueste que faz das ondas mau caminho
e sopra aos meus ouvidos este imperfeito bolerinho.
És a porta e a praça da velha cidade a oriente
O jardim de laranjeiras que julgo ter sonhado
O lento render da tarde na lua que se pressente
O tigre, a górgona, o centauro, o cavalo alado.
e és a letra com que todas as estórias se escrevem
e és a pauta onde todas as notas de jazz fervem
E és a água, o vinho, o mel, a pimenta
O rasgo na carne, as veias abertas, o sangue
O travo do mar na minha boca sedenta
O sul para onde as aves partem
E o norte onde os rios nascem.
e ilumina a face mais sombria do meu ser.
És o sol de inverno que do alto se alquebra
e os meus pés nus vem na manhã aquecer.
E és o vento sueste que faz das ondas mau caminho
e sopra aos meus ouvidos este imperfeito bolerinho.
És a porta e a praça da velha cidade a oriente
O jardim de laranjeiras que julgo ter sonhado
O lento render da tarde na lua que se pressente
O tigre, a górgona, o centauro, o cavalo alado.
e és a letra com que todas as estórias se escrevem
e és a pauta onde todas as notas de jazz fervem
E és a água, o vinho, o mel, a pimenta
O rasgo na carne, as veias abertas, o sangue
O travo do mar na minha boca sedenta
O sul para onde as aves partem
E o norte onde os rios nascem.
segunda-feira, 17 de dezembro de 2018
Diário de Bordo
Este navio chega hoje ao Natal.
As luzes dos chineses já estão espalhadas pelos mastros e agora é esperar que isto não arda tudo. Pendurámos os prisioneiros no cesto da gávea unidos em forma de estrela. Ficou bonito. Com os que nos sobraram, fizemos um presépio vivo em que não nos falta nem a girafa, nem o leão, que o Circo Chen nos alugou a preços de saldo. Não temos menino jesus, mas como tencionamos desmontar tudo a 25, contamos que ninguém chegue a dar pela sua falta. Substituímos o rum pelo vinho quente com canela. Andhriminir, o cozinheiro viking, está desde ontem a treinar receitas natalícias. Polly, o papagaio Pirata, consciente da sua aptidão para sucedâneo de peru, não tem sido visto na cozinha. Os bloggers e os poetas, num raro armistício, andam pelo convés a ensaiar cânticos de Natal. São péssimos. Os ex presidiários, libertos desde que há muitos anos atrás embarcaram neste navio, continuam a cumprir a atávica tradição de passar estes dias a preencher requerimentos para saídas precárias. Álvaro de Campos, é claro, dorme embriagado. Guiliano, o Pirata Italiano, está ocupado a escrever postais de Natal para todas as suas namoradas. Esta vossa tudo menos humilde capitã, que deus-nosso-senhor-nos-livre-de-tamanho-defeito, senta-se finalmente na sua cadeira de pensar e pensa que este ano, antes de aqui chegar, já trazia o Natal no coração.
(de seguida, é claro, vomita o cliché)
domingo, 16 de dezembro de 2018
Death makes angels of us all
Live in the light of certain
South Cruel bindings.
The servants have the power
Dog-men and their mean women
Pulling poor blankets over
Our sailors I'm sick of dour faces
Staring at me from the tv Tower,
I want roses in
My garden bower; dig?
Royal babies, rubies
Must now replace aborted
Strangers in the mud
These mutants, blood-meal
For the plant that's plowed.
They are waiting to take us into
The severed garden
Do you know how pale and wanton thrillful
Comes death on a strange hour
Unannounced, unplanned for
Like a scaring over-friendly guest you've
Brought to bed
Death makes angels of us all
And gives us wings
Where we had shoulders
Smooth as raven's
Claws
No more money, no more fancy dress
This other kingdom seems by far the best
Until it's other jaw reveals incest
And loose obedience to a vegetable law.
I will not go
Prefer a feast of friends
To the giant family.
Virá o amor e terá os teus olhos
Sobre o amor, aprendi que deverá ter os mesmos olhos onde quer que esteja.
No amanhecer das ruas de Montmartre; no por do sol do Sena; nas noites escuríssimas de Santiago de Compostela ou nas madrugadas húmidas do Minho. Um amor que se apresenta com os mesmos olhos nas festas de Lisboa ou nas estradas de Queijas. No cansaço, no sono, na alegria. É um olhar único a essência do Amor.
(O título é roubado ao Pavese, que escreveu “virá a morte e terá os teus olhos”.)
segunda-feira, 19 de novembro de 2018
Rubaiyat
Nunca antes tinha percebido as razões pelas quais tanto gosto de poesia árabe.
Amor e vinho: A composição temática de qualquer bom rubaiyat.
Amor e vinho: A composição temática de qualquer bom rubaiyat.
Por mais esta noite
Deitada no chão, à sombra da árvore da vida, o céu é sempre de um azul tangível. As folhas ainda eram verdes quando aqui me deitei e coroavam as ocasionais figuras feitas de nuvem que deslizavam lentamente. Entretanto, amareleceram, caíram e vieram forrar de ouro a cama onde me deito. Agora tenho vista aberta para o infinito e, à noite, as estrelas acendem o rasto de um olhar.
Deitada no chão, à sombra da árvore da vida, perdi o fascínio pelas constelações amovíveis e pela direção dos ventos. São coisas que só interessam a quem viaja e eu não quero estar em nenhum outro lugar. Fiz deste chão a minha casa e é a única a que algum dia pertenci.
Deitada no chão, à sombra da árvore da vida, há muito que se avariaram os relógios, partiram as ampulhetas, obscureceram todas as clepsidras. O tempo desistiu de nos contar os dias e nós fizemo-los nossos com a avidez do mendigo ao seu cobertor.
Se estender os dedos, posso tocar o céu, tingir de azul a derme da alma, acender a lua.
Deitada no chão, à sombra da árvore da vida, se estender para os teus os meus dedos, quando estendo para os teus os meus dedos, é a mortalidade que se ajoelha.
E seremos deuses por mais esta noite.
Deitada no chão, à sombra da árvore da vida, perdi o fascínio pelas constelações amovíveis e pela direção dos ventos. São coisas que só interessam a quem viaja e eu não quero estar em nenhum outro lugar. Fiz deste chão a minha casa e é a única a que algum dia pertenci.
Deitada no chão, à sombra da árvore da vida, há muito que se avariaram os relógios, partiram as ampulhetas, obscureceram todas as clepsidras. O tempo desistiu de nos contar os dias e nós fizemo-los nossos com a avidez do mendigo ao seu cobertor.
Se estender os dedos, posso tocar o céu, tingir de azul a derme da alma, acender a lua.
Deitada no chão, à sombra da árvore da vida, se estender para os teus os meus dedos, quando estendo para os teus os meus dedos, é a mortalidade que se ajoelha.
E seremos deuses por mais esta noite.
segunda-feira, 12 de novembro de 2018
domingo, 14 de outubro de 2018
segunda-feira, 1 de outubro de 2018
Confissões
como boa ladra que sou, roubo com a mão direita aos poetas, aquilo que com a esquerda te estendo.
no mercado das almas, a poesia, ainda assim, é a menos indigna das moedas.
segunda-feira, 24 de setembro de 2018
sábado, 22 de setembro de 2018
Caderno de encargos
Habituar-me-ei à felicidade.
Será azul a sombra do pássaro,
leve o rasto de cada ausência,
certo o pulso da emoção.
Não deixarei culturas microbióticas
subirem por tábuas de gavetas fechadas
nem procurarei os telhados inclinados
para neles estender a corda de funambulista
Não ouvirei os sussurros que o medo
que vem do chão, deposita à noite na almofada
nem lhe retirarei todas as espadas
para que com o seu fio não me corte.
Será sempre inteira a lua,
estreita a corda de todos os Nós,
aberta a mão que se entrega.
Habituar-me-ei à felicidade.
Será azul a sombra do pássaro,
leve o rasto de cada ausência,
certo o pulso da emoção.
Não deixarei culturas microbióticas
subirem por tábuas de gavetas fechadas
nem procurarei os telhados inclinados
para neles estender a corda de funambulista
Não ouvirei os sussurros que o medo
que vem do chão, deposita à noite na almofada
nem lhe retirarei todas as espadas
para que com o seu fio não me corte.
Será sempre inteira a lua,
estreita a corda de todos os Nós,
aberta a mão que se entrega.
Habituar-me-ei à felicidade.
segunda-feira, 17 de setembro de 2018
Home
Quando os ossos se encaixaram, a combinação rasgou no peito uma porta inusitada.
Entre a quarta e a quinta costela fiz a enxerga onde me deitei a dormir.
Foi o sono dos animais, das crianças, dos inocentes.
Havia, enfim, chegado a casa.
domingo, 16 de setembro de 2018
sexta-feira, 14 de setembro de 2018
Capitão Strut
Um coração Pirata, vem nos livros da especialidade, só se deixa espelhar em coração de igual natureza. Podemos percorrer todos os mares de olhos abertos, apontar bússolas a rochedos escondidos, usar de um resto de boa fé para com meros mortais, ignorar os bons avisos do vento, recitar esses antigos códigos de ética de uma única frase. Tudo podemos fazer e tudo será em vão. Um coração Pirata nunca pertencerá a ninguém. E só se dará em penhor a outro coração Pirata.
Durante uma curta estada em Tortuga, nas tabernas de má fama, entre facas e dados, vi-o ao balcão. Os céus responderam com um eclipse e a lua foi de sangue.
Os códigos de acasalamento da minha gente não correspondem aos dos homens de bem. Envolvem tangos de rosas roídas, danças de espadas ao luar, palmas das mãos seladas em pactos e a certeza empírica das coisas de que, inevitavelmente, um dos dois terá de morrer.
O Capitão Strut partiu hoje para o mar do Norte.
Perdi as horas sentada na gávea entre um livro de Virgínia e o reflexo metálico que deixaram no mar as asas do meu capitão.
Neguei os três pratos que me estendeu Andrhiminir, o cozinheiro Viking adorador da bimby. Mandei calar o melhor verso de Álvaro de Campos. Ignorei os protestos dos presidiários. E quando a tripulação blogger, em desespero de causa, sugeriu chamar Tagik, o berbere contador de histórias, fiz saber que o deserto já não mora em mim.
Polly, o papagaio Pirata, pendurou-se no mastro de onde me grita insultos sobre a vulgaridade das mulheres apaixonadas.
Tenho uma campanha para fazer e todo o mar das Caraíbas para aterrorizar.
Mas o meu capitão partiu e num baú cerrado, em penhor, levou-me um músculo que me faz falta.
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