quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Cioran2

Cioran disse que esperar é desmentir o futuro.
Também poderia ter dito que é confirmá-lo.
Continuaria a ser verdade.

Cioran

Cioran disse que o limite de cada dor é uma dor maior.
Não é verdade. Só se sente uma grande dor. Todas as outras são tristes revisitações da primeira. É sempre a mesma, uma dor única, passada, revivida em réplicas imperfeitas.
Depois da primeira dor, todas as outras são mera candonga.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Sem nome

Por fim, fui alcançada pela tristeza do dia.
Ainda icei as pernas e trepei pelas cordas o mais depressa que soube.
O trapézio é muito alto e eu sento-me para lá das nuvens.
Onde o dia é sempre azul e a noite estrelada.
E essa felicidade, que só existe no que antecede e no que precede todas as coisas, é o meu superpoder.
Mas desta vez trouxe nos bolsos um resto de nuvem escura.
Deles se formou uma chuva estrangeira, alienígena.
Essa tristeza sem nome que agora me chove no colo.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

Diário de Bordo

Zarpámos, eu e esta intrépida tripulação Pirata, há vários meses atrás, na direção do triângulo das Bermudas. Por lá navegámos durante muitos dias à procura dos tesouros que os outros perderam quando cruzaram esse espaço maldito onde o nada reina e nenhum homem sobrevive. (Houve quem aventasse que procurávamos o amor, mas não nos pronunciamos sobre o sentido das metáforas).
Não nos perdemos em nihil. Não ouvimos cantos mágicos de sereias assassinas. Não fomos arrastados para as profundezas do mar pelos ávidos braços de Kraken. Não conhecemos, tão pouco, a fúria de um Eolo insultado pela nossa presença.
Atravessámos o triângulo das Bermudas - várias e vezes e em diferentes direções - e concluímos que não há lá nada.
Não o nada que promete o início de todas as coisas; não o nada que atemoriza pela eternidade do vazio. Nem sequer o nada que é o desolo das nuas paredes na alma. Apenas o nada, o velho nada que é dos pragmáticos e entedia até aos ossos. Nihil ao espelho.
Um vazio tão profundo e concreto como o das nossas barricas de rum.



Seis meses

Seis luas novas vieram desde que deixei o exílio.
O que mais me faz falta é o vento dos loucos. De tempos a tempos acordava com areia nos dentes, feridas nas plantas dos pés e a camisa de dormir salgada. Sabia, então, que, enquanto dormia, tinha chegado o sueste, o vento dos loucos. Durante três dias enlouquecíamos todos e o remoínho de lixo plástico que se arrastava nas ruas era o reflexo da reciclagem das nossas memórias. Durante três dias levantávamo-nos e adormecíamos com a alma a gritar em sintonia com os uivos do vento, de tal forma que, na sua partida, já não sabíamos o que era uma e outra coisa.
Aqui não há vento. A temperatura, o ar e até as horas de luz, são rigorosamente controladas pelos burocratas que há muito descobriram que a melhor forma de nos controlar é eliminar a sensação do tempo. Aqui a loucura não é trazida pelo vento. Existe no asfalto e cola-se-nos às solas dos sapatos. Quando damos conta já se agarrou às nossas pernas. As pessoas sacodem-na com força porque, aqui, ninguém aceita a loucura, ainda que temporária, como uma inevitabilidade da natureza. Aqui não há natureza. Há um ecosistema definido por decreto-lei. E um dia, também eu deixarei de contar o tempo. E de enlouquecer.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Anymore

Tenho enterrado no fundo do mar, em lugar ignoto, um baú de chaves perdidas. Não fiz mapa do sítio nem guardei cópias das chaves. Nunca ninguém o encontrará, jamais o seu conteúdo verá a luz do dia. Segui esse critério ancestral que ordena que se enterre o que é indestrutível mas incómodo.
Na maioria das vezes o meu tesouro, que é também o meu crime, castigo e vergonha, é uma dor surda que o ruído dos dias disfarça. Uma manhã por outra, porém, liberta-se do baú o espírito do seu conteúdo e espera-me aos pés da cama, para me surpreender logo que abro os olhos, atacando-me, à traição, antes que tenha tempo de desviar o olhar. 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

meias

As botas eram novas e tingiram-me as meias. 
A condição humana é de uma fragilidade insuportável. 
Não interessam os poemas que sabemos com o coração, os livros que lemos ou as músicas que conhecemos ao terceiro acorde, quando se está dentro de uma máquina, numa sala gelada e tudo o que reconhecemos como próprio é um par de meias tingidas que nos rouba a última réstia de dignidade.
Felizmente, tendemos a esquecer-nos disso. 

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Esta noite africana

O dia pariu uma noite instantânea, africana.
Não sei de onde veio a pedra que atingiu a lâmpada.
Vi os cambiantes do dourado enegrecerem na sombra das minhas próprias mãos.
Não há dor mais inoportuna do que aquela que é de causa ignota. Essa dor traiçoeira que é uma traça de asas abertas pousada no vison que nos cobre o peito.
Quando abri os olhos havia, sob a noite densa, um buraco de malhas roídas.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Destoriada

Tagik, o berbere contador de estórias, dormia a sono alto à entrada da tenda. 
Fizemos a longa viagem pelas areias do deserto em busca de uma estória. Não há na vida coisa mais valiosa do que uma boa estória. Teria de bom grado percorrido duas vezes a distância desta areia infinita e suportado as feridas que o sol do meio dia deixa na boca e as pontas dos dedos queimadas pelo frio da noite de estrelas, se, ao menos, tivesse encontrado Tagik acordado na sua tenda, de mão estendida para a minha moeda e olhos fixos para lá de onde nasce o vento, que é também o sítio de onde vêm as  boas histórias. 
Mas Tagik, o berbere contador de estórias, não acordou.
E eu regressei desta viagem, um pouco mais ferida, um pouco mais cansada, um pouco mais velha, com o bolso pesado pela moeda que, desta vez, a mão de Tagik não quis receber. 

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Espelhos

Quando, por fim, puxei a ponta do lençol e descobri o espelho, enfrentei-me sem medo, esperança ou rancor numa moldura dourada. Nevegámos tantas milhas, passaram por nós tantas estações, foram tantas as albas que o espelho revelou-se incapaz de me reconhecer. 
É uma forma de liberdade.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Moon-blue

Dir-se-ia que falhar a lua azul passou a ser um traço de personalidade.
A quinta lua veio. Foi azul e falhei-a.
Vi-a hoje, já alta, branca, desdenhosa.
Uma lua que nos lembra que não esperou, que não espera, que nunca esperará por nós.
Aprendi a minha lição:
Se houver uma lua sexta, azul, branca ou rosa, estarei sentada, junto ao rio, à espera que, para que eu tenha o privilégio de a viver, se deixe nascer do fim dos dias.

Elektra

Diz Clitemnestra à filha, Elektra, que não há demónios internos que não se libertem. É indispensável  é o sacrifício do sangue certo. Eu, que sei algumas coisas sobre demónios internos e sobre altares sacrificiais, digo-vos que assim é.
Uma alma liberta de demónios internos, espelha, sobretudo, o sangue que certeiramente sacrificou.
Do sangue inocente que no processo escorreu, é claro, não reza a história.