segunda-feira, 22 de janeiro de 2018
sábado, 13 de janeiro de 2018
Idioma
gastei todas as palavras.
pródiga,
revirei os bolsos.
vivi a crédito.
dei em penhor.
dei em penhor.
pedi aos poetas.
roubei nas esquinas.
não sobrou
metáfora
palavra
letra
com que fazer
um só verso.
para ti,
invento um idioma.
um que seja comum
às árvores
às árvores
e às pedras antigas
a à areia do deserto
e à água das fontes
e ao rumor das mãos,
quando se encontram
depois de se faltarem.
um idioma
sem signos,
sem signos,
feito da matéria
das coisas
que são.
das coisas
que são.
do silêncio,
das células,
do acaso.
sexta-feira, 12 de janeiro de 2018
Anjos
– Os pés são de barro, senhor, é preciso levar-me ao colo.
Uma manhã não mais se cabe num verso e estendem-se os ossos dos pés e das mãos para fora da capa do livro. Não é algo que se planeie ou a que se aspire. Num instante espreguiçava-me entre duas metáforas e no seguinte estava estendida no chão do quarto. Saí para a rua a tempo de assistir à chegada do outono. Vi a cidade sob a chuva de folhas amarelas das árvores que até então só conhecia de cima. Veio a noite e senti as luzes tão perto que nelas poderia ter aquecido os dedos. Depois fez-se inverno e conheci a força do vento e soube o que é o frio.
Visto daqui, o rio não é um espelho de prata que serve de cama à lua. É o fio de água onde lavo os pés. A música deixou de ser um conjunto de etéreos acordes enleados. É a expressão na testa do baixo e o balancear das ancas da cantora e os dedos calejados do guitarrista. As casas não são o longínquo suporte dos telhados por onde se passeiam gatos. São as conchas dessa estranha raça de humanos que, aos magotes, evitam cruzar olhares nas ruas.
No princípio, tive medo. Depois, tive fome e tive sede. Agora, tenho apego.
Não sou ingrata. Viver dentro de um livro de poemas é habitar-se um jardim de inesgotável fonte de beleza. É ser-se anjo, ou musa, ou um Deus. Mas todos esses são, sem o saberem, o produto do sonho de outrem.
Cair na terra é ser-se livre. E sonhar os anjos e as musas e os deuses.
quarta-feira, 10 de janeiro de 2018
terça-feira, 9 de janeiro de 2018
Comunicações intergalácticas
Desde o dia em que dela te foste, a terra deu mais uma volta ao sol. Uma vez por ano suspendo a minha descrença na imortalidade da alma, acendo-te uma vela e vejo-a arder ao som da tua canção. Deixei de suportá-la à força de ouvir-te aprendê-la nas cordas da guitarra. Tocavas pessimamente e se acaso te acomodaram no inferno, por certo, o hospedeiro terá contratado o serviço para aumentar a agonia dos teus vizinhos.
Precisei de nada menos que vinte anos e da tua obtusa morte para perceber uma música sobre a imortalidade e a angústia do envelhecimento quando não a vida não se faz em função de causa alguma. Continuo, porém, a confiar mais nas coisas do que nas causas. A felicidade simples que existe numa escova de cabo de prata, ou num livro que esperámos para ter, ou na cadeira que alojas na sala, ou mesmo na mais bizarra garrafa de vinho, é a aprendizagem metafísica dos espíritos livres. Livres do insuportável peso da existência. Creio, mesmo, que é a única forma de liberdade que importa. Aprendi com a tua morte que as mais perigosas correntes são as que nos agrilhoam à nossa escuridão interior. Na falta de uma causa que se compre, só a futilidade liberta.
Seja como for, dizia, desde o dia em que dela te foste, a terra deu mais uma volta ao sol. E foi a sexta. Finalmente, a sensação da realidade voltou a cruzar-se comigo no espelho e assim me desfantasmizei. Encarnei no corpo que me sobejou e ele aceitou-me de volta com a alegria do cão que nunca soube culpar o dono pelo abandono. Alguém terá dito um dia que voltamos sempre ao sítio onde nos esperam. O sítio onde nos esperam, porém, pode ser tão próximo como a pele que nos acolhe e não haverá regresso mais íntimo e poético do que aquele que se define pela identificação no espelho.
Só o poderá saber quem um dia se enlutou da sua própria sombra.
terça-feira, 2 de janeiro de 2018
segunda-feira, 1 de janeiro de 2018
iemanjá
Veio do leito do rio, a escassos minutos da meia noite, para pendurar no meu peito a chave do ano que haveria de nascer.
Não lhe levei flores, pois nada ofereço aos deuses, mas retruibuí com o riso. Mantive-o no fundo da garganta quando nos céus rebentaram estrelas de luz e fogo e a deusa partiu, deixando-me entregue à imensidão da terceira lua e a essa mão que é o negativo da minha.
Ainda aqui estava, hoje, no sítio onde o guardei. Ainda aqui está, agora, o riso, mesmo depois de abertas as portas do tempo.
Não lhe levei flores, pois nada ofereço aos deuses, mas retruibuí com o riso. Mantive-o no fundo da garganta quando nos céus rebentaram estrelas de luz e fogo e a deusa partiu, deixando-me entregue à imensidão da terceira lua e a essa mão que é o negativo da minha.
Ainda aqui estava, hoje, no sítio onde o guardei. Ainda aqui está, agora, o riso, mesmo depois de abertas as portas do tempo.
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