Olá.
O meu nome é Cuca e hoje não fiz muffins (ainda).
Vivo nesta casa com duas varandas onde as gaivotas vêm pousar e às vezes ficam do lado de fora da janela a olhar-me dentro dos olhos como se soubessem a verdade. Como que a dizer-me, mais precisamente, que sabem a verdade. O mar está sempre nas minhas costas porque assim teve de ser. Esta é a minha décima oitava casa e não será a última. Mas foi a primeira casa que eu escolhi para ser feliz. A felicidade, não se deixem enganar, precisei ler muitos livros para chegar a esta conclusão, é uma opção pessoal e intransmissível. Escolhe-se todos os dias ser um bocadinho feliz e um dia distraímos-nos e morremos e os outros dirão, aliviados, que ao menos fomos felizes. Ser feliz é uma responsabilidade social, como bem o sabem todas as pessoas que mantêm padrões mínimos de generosidade. Noutros tempos também eu me revoltei contra os cânones instituídos e declarei-me livre do espartilho da felicidade como meta obrigatória e padrão mínimo de inferência de uma normalidade pacificadora. Mas depois compreendi que o direito à infelicidade é conquista que não justifica a convocatória de um exército. Apresentei-me nas fileiras do escrutínio das almas com uma bandeira branca e optei por ser feliz apenas para que me deixassem em paz. Com a minha casa com duas varandas onde as gaivotas vêm pousar entre dois voos e o cheiro permanente da baunilha das velas e os livros que compro compulsivamente para ter sempre tantos que nunca sou realmente obrigada a ler nenhum. Se tivesse mais espaço deixaria todos os livros abertos na sala para que as letras pudessem tatuar a atmosfera e confundir-se na minha ausência formando palavras novas. Às vezes penso que o mal do mundo reside na falta de palavras novas. Talvez através delas pudéssemos inventar novas emoções e inventar a cura para o tédio. Mal mortal e contagioso. Além de livros também compro muitos vestidos. Tenho centenas de vestidos que me servem para garantir a oportunidade de escolher sempre os mesmos três ou quatro. Ter coisas acalma-me. E fazer muffins compulsivamente. Da mesma forma como algumas pessoas escolhem ser alcoólicas ou drogadas ou viciadas em pornografia ou poetas eu tenho uma compulsão que me leva a fazer muffins. Faço-os sempre iguais. Com framboesas. Nem sequer gosto particularmente de comer muffins. Acho que gosto apenas de os ver crescer dentro de umas formas estranhas de silicone que também compro compulsivamente. E a tensão de nunca saber como é que aquilo ficará afinal, anula a tensão de não saber como ficarão afinal, outras coisas mais importantes do que os muffins e que não dependem de receitas retiradas da internet, como, por exemplo, a vida o amor e as vacas.
Ser viciada em muffins, corrijo, em fazer muffins, não é a pior coisa do mundo quando se ganha um salário que dá para comprar vários pacotes de farinha e açúcar e ovos. Além do mais, há uma música de uma banda brasileira chamada O Rappa - que ouvi uma madrugada enquanto descia uma montanha dentro de uma daquelas pick-up que se usam para descer montanhas e ainda antes de ser viciada na confecção de muffins ou, sequer, ter revelado o menor sinal de distúrbio mental latente, e portanto, das últimas vezes que me lembro de ter sido sã - que diz que cada um tem os seus milagres. Cada um tem os seus milagres para fugir. Para resistir.
Por isso, sou a Cuca e hoje não fiz muffins (ainda).
Em tempos gostava de escrever estórias e inventar peças de teatro com personagens trágicas que aspiravam à condição de morto-vivo (assim mais ou menos como no Ibsen). Mas depois um dia no meio da ponte de Brooklyn tive uma epifania brevemente relacionada com essa coisa da felicidade por decreto e passei a dar por melhor empregue o tempo que passo deitada no sofá a ver a casa dos segredos e a comer chocolate dolphin. Um que tem especiarias. Nietzsche alertou para os efeitos perniciosos de um certo tipo de arte só que ninguém o levou a sério porque toda a gente sabe que Nietzsche era louco.
Eu não gostava de loucos. Poupei os cento e cinquenta euros que o psiquiatra me levaria para me explicar que a razão pela qual tinha medo de loucos radicava na minha própria fobia de auto-enlouquecimento. Há coisas que nós sabemos sobre nós próprios e não precisamos que um estranho nos cobre dinheiro para nos dizer.
Mas tudo isso faz parte do passado. Com o mesmo desprendimento e conformada inevitabilidade com que já antes havia abraçado a felicidade, decidi agora acolher a loucura. Para além do mais, descobri que é global e que apenas nos andamos todos a enganar uns aos outros.
Num dos livros que hoje comprei em excesso, li isto:
O Eclesiastes diz no capítulo primeiro: "O número de loucos é infinito." Este número infinito abrange todos os homens, excepto alguns que duvido alguém tenha podido ver.
Foi, claro, no Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão.
E agora vou fazer muffins.