Houve uma Páscoa em que me procuraste para me dar um pão. Levei-o para casa e comi o teu pão com o queijo que comprei na queijaria clandestina que havia na garagem da casa em frente àquela onde morava e que nunca fiz minha. Compus um cenário bonito para uma fotografia e partilhei-o com o mundo. A toalha era azul e a porcelana tinha pertencido à tua avó. Passei a tarde sentada em frente ao mar a ler o primeiro volume de contos do Nabokov. Tinha um marcador de metal em forma de borboleta que entretanto perdi. Ouvia-se, por insondáveis razões de coerência, Madama Butterfly. E chovia, porque chovia sempre entre as quatro e as sete da tarde. O amor dormia inocente como uma doença assintomática que se aproveita do silêncio para alastrar.
Hoje, o facebook perguntou-me se queria partilhar a memória desse pão cuidadosamente exposto sobre a travessa de porcelana branca da tua avó. O primeiro volume de contos do Nabovok haveria de sofrer a cicatriz eterna da borboleta metálica que ficou demasiado tempo pousada na página que aquela última tarde marcou.
Não quis partilhar a memória desse derradeiro instante de inocência que se esvaiu ainda antes que a chuva se calasse. Depois dele, Jesus nasceu, morreu e ressuscitou várias vezes sem que entretanto nos tenha vindo salvar.
O facebook vingou-se do meu revisionismo histórico entregando-me, minutos depois, a mensagem que me informa que, finalmente, encontraram-me o esgotado segundo volume de contos de Nabokov.
Ouvia-se, mais uma vez, por insondáveis razões de coerência, Madama Butterfly.
Só o marcador em forma de borboleta e a inocência, esses, ficaram irrevogavelmente perdidos.
E, no entanto, ler Nabovok é aprender que a asa irisada de uma borboleta ou a forma de uma folha podem servir de alguma consolação...
ResponderEliminarÉ mesmo assim.
EliminarCuca, vou dizer-te uma coisa séria, ainda com a cicatriz da borboleta metálica na minha imaginação. Gostava, gostava muito, de um dia no meu futuro, não muito distante, entrar numa livraria e pegar num livro que saberei muito bem qual é, vou comprá-lo com uma alegria funda de coisa certa, de o mundo encaixar em momentos assim. Abro o livro numa página qualquer e leio este teu texto, folheio-o e vejo que os outros teus textos estão também lá. Sorrio e sigo para a caixa, levando o livro junto ao peito que é o que faço normalmente com aqueles que compro.
ResponderEliminar(se um dia me puderes dar essa alegria, avisas-me?)
E as coitadinhas das árvores? Não deveríamos poupá-las?
Eliminar:)
Susana, se essa insanidade acontecesse não só te avisava como até te dedicava também a ti o livro.
A memória é uma utilidade inconveniente.
ResponderEliminar:)