domingo, 20 de março de 2016

Diário de Bordo

Caí doente num alvorecer e nessa inútil atividade gastei vários dias. Andrimhnir, o cozinheiro pirata, passou o tempo à minha cabeceira a ler-me pautas de música, interrompidas por bulas de medicamentos. A minha obsessão pelo piano chegou à fase do solfejo e substituí a paranóica busca de livros esgotados pelo colecionismo de pautas de músicas que já não terei tempo de aprender a tocar. A meio da minha doença ocorreu-me a possibilidade de não ser eterna e conheci a culpa pelo tempo desperdiçado com tarefas ignóbeis. Não lamento o tempo gasto no trabalho pois, relativamente a esse, resta-me a consolação de nunca lhe ter dedicado um minuto a mais do que o estritamente necessário à sobrevivência do meu corpo e do meu espírito. O facto de o meu espírito ter necessidades vitais dispendiosas não é culpa de ninguém. Porém, devem-me muitos dias quilos de insignificante literatura, programas de televisão medíocres, obrigações sociais, pessoas que entretanto foram à sua vida e que agora nem sei se são vivas ou mortas, o trânsito de Lisboa, esperas em salas de aeroportos, etc, etc. No meu suposto leito de morte, enquanto Andhrimnnir me contava as pulsações, converti todo o tempo que me roubaram em peças de piano e concluí que, mesmo com a minha natural falta de habilidade, poderia, na pior das hipóteses, ter aprendido a tocar na perfeição o Claire de Lune do Debussy. Foi assim que percebi que um conjunto de pessoas desconhecidas entre si conspirou para me roubar o orgulho de saber tocar na perfeição, da primeira à última frase, o Claire de Lune do Debussy. 
Partilhei a minha angústia com Reboredo, o médico ortopedista, que a transmitiu a toda a tripulação juntamente com o diário clínico. No dia em que os chamei para lhes comunicar o plano de substituição provisória do poder, num gesto de rara generosidade, trouxeram-me uma versão da música de cuja habilidade de a tocar o mundo inteiro me privou. 
Mas era uma versão tão mal executada que, fiel àquela ideia de que se queres alguma coisa bem feita é melhor que a faças tu, fui obrigada a abandonar o meu estado de doença e a regressar à vida apenas para começar a praticar, para um dia poder, enfim, ouvir a música dignamente tocada. 
Nessa manhã, mandei chamar o diabo. 
Negociei cinquenta anos mais. 

16 comentários:

  1. Espero que desta feita tenha pago o imposto de selo.

    (é a única forma de ser válido em tribunal no caso do diabo o tentar impugnar)

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    1. Estes tecnocratas não sabem nada da vida. Os negócios com o diabo selam-se com sangue! Caramba, não leu nos livros??

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    2. Livros? Tenho lá tempo para isso... tenho a vossa vida nas minhas mãos. Decisões importantíssimas a todo o momento. Não me posso distrair.

      (depois quero ver como vai provar em tribunal que o sangue é do diabo. Os testes de ADN saem muito caros ao Estado. Caramba, os cidadãos deviam pensar nestas coisas...)

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  2. E o Diabo? O que quis ele em troca?

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    1. O de sempre... Uma ou outra almazita. Nada que faça falta.

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  3. 50 anos mais para aprender a tocar condignamente o Claire de Lune...Não era melhor contratar um pianista decente para esse barco?

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    1. Ora Outro Ente, a do pianista, claro, como obsessão é muito melhor do que roubar...

      (O diabo não tem alma; mas é comprador compulsivo)

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    2. Hum... nesse caso, sinto-me tentado...

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    3. Temos então que o diabo é ele próprio uma pobre criatura atormentada pela sua obsessão com o colecionismo de almas. Estou maravilhada com a profundidade deste nosso pequeno brainstorming...

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  5. Querida Cuca, a Pirata,
    Que obsessão estupenda. 50 anos para conquistar a lua.
    Bom trabalho,
    Outro Ente.

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    1. Já comecei. Quer-me parecer que deveria ter negociado 70 anos.

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    2. tu consegues!



      (gosto da tua alma, é cheirosa)

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  6. Claire de Lune de Debussy aborrece-me. Normalmente oiço até meio e depois mudo, acho-a uma música sem cor.
    Mas depois de ter lido este post (vê lá como são as coisas) vou ouvi-la com outros ouvidos, a ver se lhe vejo alguma (cor).
    Bom treino, que te saia uma interpretação tão linda como saem os teus textos, querida Cuca.

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