quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Adeus mundo real

Dou por terminada a minha curta expedição ao horrível mundo da realidade. 
Não sei se o tempo que estive fora foi demasiado ou insuficiente. Sei que uma semana de atenção ao real fez-me recordar as razões pelas quais decidi passar a habitar as páginas de um ou vários livros, mantendo-me quentinha e confortável dentro de uma bolha de sabão esterilizado, decorada com versos, e flutuando, distante e ocasionalmente, por entre as coisas e as pessoas e as coisas das pessoas.
O mundo tornou-se mais incompreensível do que o mais críptico parágrafo do Ulisses. E por impossível que isso possa parecer, também mais aborrecido.
Além do mais, a expedição foi um fracasso.
Dez dias de atenção ao real não foram suficientes para, por exemplo, perceber quem ganhou as eleições no meu país. Aliás, não chegaram sequer para conseguir apreender o conceito de país, ou essa claustrofóbica ficção de ser cidadã de um país. 
Tentei apreender o mundo através da televisão mas só consegui encontrar duas espécies de programas: aqueles em que pessoas muito zangadas e feias discutem, com ganas de psicopata, assuntos cuja importância me escapa e outros em que pessoas muito zangadas e feias e perseguem psicopatas homicidas.
Não sei o que dizer sobre uma sociedade obcecada com a psicopatia ao ponto de a tornar uma fonte de entretenimento. Suspeito, porém, que não me apetece viver nela.
A tentativa de apreensão da realidade através do elemento humano também não correu melhor. Só conheço pessoas inteligentes. Alienaram-se, pois, muito antes de mim. 
Regressei às páginas dos livros de onde tenciono não voltar a sair. 
Há mais verdade no Fausto de Goethe do que nesta massa demente que já há muito vendeu a alma ao diabo por uma miserável dose de ilusão. 

11 comentários:

  1. Ah, mas a capitã não partilha da convicção de Shakespeare de que «todo o mundo é um palco, homens e mulheres apenas actores?» O que chama realidade não passa, de facto, de uma má peça, alegadamente de um demiurgo que a encomendou a um falhado dramaturgo fantasma; já os actores, são todos merecedores de Óscar, cada qual a fazer o seu papel -- a Academia é que não os reconhece...

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    1. Partilho. Inteiramente. Não seria péssimo se a peça fosse uma comédia de shakespear. Mas é de Ibsen. Mortos em vida a mais e azul-esperança de menos.

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  2. Querida Cuca, a Pirata,
    "O eterno feminino, atrai-nos para si". O que haverá de mais verdadeiro?
    Talvez o destino seja cumprir o desejo.
    Um beijo,
    Outro Ente.

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    1. "Curiosa é a mulher obra do mito,
      Usa-a o poeta como lhe dá jeito:
      Nem velha nem madura a vejo.
      É sempre objecto de desejo,
      Raptada infanta, na idade ainda adorada;
      Em suma: para o poeta o tempo é nada."
      (Diz Quiron a Fausto, algures no início do segundo acto)

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  3. O género masculino frequentador desta nave é demasiado elegante, ou eu sou demasiado burra (elegante, cintudo).

    Se isto é a programação para um vazio, doravante, arriscas-te a levar um murro bem assente no nariz. Pensa no assunto, enquanto te sirvo um Riesling de morrer por mais (o meu único branco de respeito, que a acidez dos demais não é, de todo, compatível, com a minha ideia de respeito digestivo :)

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  4. (tão giro: 'cintudo': era contudo, mas nem corrijo, que contudo contém o erro, claro :)

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    1. Aceito o riesling mas tenho as minhas reservas quanto ao murro bem assente. És muito cintuda, tu! :)

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    2. Além do riesling (casta que, muito provavelmente, não se daria por cá), tenho a dizer-te que li hoje uma revista (não me perguntes pela data, mas fiquei a saber que se trata de publicação antiga) da Bertrand com a entrevista ao Mexia Um mimo para ti, va lá:

      - que mudaria o aspecto, quando lhe perguntaram o que mudaria no seu aspecto

      - que mudaria a voz, quando lhe perguntaram o que mudaria em si (whatever)

      - que desejaria viver numa quinta do Douro com saída directa para o Chiado (roubado a Eça, conforme confessou)

      - que aquilo que mais aprecia é observar e escutar os lisboetas (espero que vivas em Lisboa)

      - que, finalmente, consegue viver da escrita

      Era para ser simpática, mas lembrei-me que ninguém lhe paga para escrever no blogue, donde, não existe nisto um mimo senão aquele que lhe quiseres atribuir/sentir.

      (do lema de vida dele não falarei, que serias acometida de apoplexia instantânea :p)

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    3. E não é que o rapaz é capa da última ler?
      Conta tudo sobre isso do lema de vida, vá! Não me escondas nada.

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  5. "Uma floresta é um labirinto?
    um deserto pode ser rocaille?
    a vida é um romance?
    o mundo é um palco?
    um florete é uma flor?
    uma serpentina é uma serpente?
    Imagino o fim da Terra assim
    todas as casas e todas as ruas
    desaparecerem
    assim como todas as pessoas
    graças a um cataclismo
    sobrevivem apenas os telefones
    as baratas e as listas dos telefones
    marcianos nos dias a seguir
    tentam interpretar a lista dos telefones
    os marcianos não estabelecem uma relação
    entre os telefones e a lista dos telefones
    mas entre a lista dos telefones e as baratas
    e essa relação é plenamente satisfatória"

    Adília Lopes/ Os 5 Livros de Versos que Salvaram o Tio

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    1. Desde que na lista telefónica sobrevivente exista um verso, tudo bem.

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