Aqui, no telhado, pendurada pelos pés, inclinada sobre a noite, aliviada de uma parte do firmamento, dou pela sua presença. Está sentada no meio das telhas, a ocupar o meu antigo lugar. Noto-lhe a transparência dos ossos e uma expressão antiga no olhar. A de Eva, talvez. Diante das portas fechadas do paraíso, diz quem viu.
Apanhada na minha indiscrição, decido não dar parte de fraca e interpelo-a diretamente.
Afinal, somos velhas conhecidas.
- noite fria para quem pertence ao dia. E então, ainda lhe escreves?
- sim, claro. Até hoje, mais de duzentas cartas, incontável número de letras e até algumas notas de música.
Há uma obstinação doentia na descrição. Como quem, inventariando demónios, pensou muitas vezes na resposta.
Estico os músculos do pescoço e assento o peso nos cinco dedos de um só pé.
Não preciso de perguntar se ele já lhe respondeu. Mas, daqui, pendurada no telhado, com vista limitada para o firmamento, questiono as razões da demente empresa.
- é a minha pena e é eterna.
Responde com voz sumida.
Quando volto a olhar para cima, já desapareceu.
Penso quão terrível pode ter sido o crime.
Sei que já o esqueceu.
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