domingo, 1 de março de 2015

Os sábios

"Suportar-se-ia que estes homens exercessem os cargos públicos como asnos com uma lira, se nas restantes funções da vida se mostrassem capazes. Convidai um sábio para jantar e ele perturbará a refeição ou com um confrangedor silêncio ou com inconvenientes questiúnculas. Convidai-o para dançar e dir-se-ia um camelo a saltar. Levai-o a um espectáculo e o seu aspecto bastará para impedir que o povo se divirta; será compelido a sair do teatro como o sábio Catão por não abandonar a sua gravidade arrogante. Se intervém numa conversa, é como o lobo na fábula. Se se trata de comprar, de vender, de levar a cabo uma das acções indispensáveis à vida quotidiana, dirás que o sábio não é um homem, mas um cepo. Desta feita não pode ser útil nem para si próprio, nem para a pátria, nem para os seus, porque ignora todas as coisas comuns e porque desconhece opiniões e hábitos recorrentes. Está disparidade total de vida e ideias acarreta necessariamente contra ele o ódio. Mais, que coisa se faz entre os homens que não esteja cheia de loucura, que não seja feita por loucos e para loucos? Se alguém quiser ir contra esta prática universal, o meu conselho é que seguindo o exemplo de Timon, emigre para o deserto e aí desfrute a sós da sua sabedoria." 

Elogio da Loucura, Erasmo de Roterdão 

(Leitura muito recomendável aos Velhos do Restelo e outros arautos do fim do mundo tal como o conhecemos, para que se tranquilizem. Nada de relevante se alterou na sociedade europeia desde 1500, não sendo expectável que seja a geração presente a conseguir o milagre de perturbar tão vetusta serenidade de costumes.)

8 comentários:

  1. Nada de relevante? É exactamente essa deliciosa miopia que me diverte na generalidade dos sociólogos. O mundo avançará irremediavelmente, quer a depravação dos políticos o pretenda ou não. A ciência cara Cuca, e a tecnologia. Dê uma espreitadela. Garanto-lhe que irá vislumbrar um novo mundo.
    E afinal quem fica apeado no restelo?

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    1. A ciência não foi inventada ontem. Terão antes havido progressos porventura até mais promissores. Os Homens da Europa de 1500 eram suficientemente iguais aos de hoje para que a crítica social de Erasmo esteja atualizada. Podia ter sido escrito ontem. Nem imprensa havia...
      Para o mal ou para o bem, a última coisa que muda nas sociedades são as pessoas.

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    2. Ficaremos então neste eterno estádio evolutivo, neste fim da história? Que diferença terá então o homem de 2500 em relação ao de 2000? Ora, cara Cuca, sou eu que não acredito que acredite. Não se abrir uma publicação de ciências exactas.
      O atavismo da selecção natural está prestes a terminar, num breve momento de uma imensidão histórica. Imagino que os hominídeos precedentes tivessem a mesma perspectiva da história. E no entanto cá estamos.

      Por essa linha de argumentação seria mais interessante citar os Gregos que o homem de 1500 e concluir com vigor reforçado que a humanidade não evolui. E porque não mais atrás, até à fundação das primeiras associações gregárias? O que mudou? O fogo? Os utensílios? A escrita? A arte? A revolução industrial? A electrónica integrada e ubíqua que desvenda diariamente os recônditos segredos do mesmo cérebro concebido nas planícies do pleistoceno? Vamos lá, aqui há evidências. Não estamos a discutir o nominalismo ou qq outra abstracção.

      Mudou a tecnologia. E finalmente, pela tecnologia, estamos na iminência de mudar-nos a nós próprios.
      E não é a primeira lição da psicoterapia *não sabemos aquilo que não sabemos*?

      O universalismo niilista básico do texto citado ultrapassa qualquer consideração lógica. Recorda o meu próprio (irónico, patético e intencionalmente a despropósito), diferindo obviamente na qualidade da locução.
      Fez-lhe falta a blogo, à ocasião, e a liberdade de poder escrever sem a necessidade da cerosa luz de vela.

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  2. Evoluímos, claro que evoluímos. (Ou melhor, mudamos). Mas com avanços seguidos de recuos e, naquilo que é essencial - a estrutura da sociedade, os valores e os hábitos - de uma forma lentíssima. De tal maneira que uma única geração é pouco mais que um grão de areia no deserto e 500 anos depois as mesmas críticas sociais mantêm-se válidas. Nem sequer o digo como se fosse coisa negativa. Parece-me normal que assim seja.
    E, perdoe-me que discorde, mas a Erasmos de Roterdão, como aliás aos pensadores atuais, não lhe faria nenhuma falta a blogosfera.

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  3. :) não há lugar a pedidos de desculpa na troca de argumentos.

    Não esqueça que grande parte dos Pensadores actuais se encontra obnubilada no interior de laboratórios, fora da linha de visão de quem já nem sequer consegue compreender a sua linguagem.
    O Pensador já não é o Poeta ou o Filósofo diletante. Isso é uma noção do passado.
    É este o segundo erro, menosprezar a *cultura científica*, olhar para a Cultura tal como os Gregos e as suas musas.

    E o argumento fulcral é exactamente aquele que apontou, embora invertido. estamos perto, historicamente perto, não falo de eras geológicas, de uma geração não se reconhecer na anterior, de os próprios conceitos de geração, sociedade, humanidade, necessitarem de uma redefinição.
    Não se trata de um louvor ao desconhecido, nem da visão do homem como pedestal daquilo que lhe sucederá, mas uma convicção fundamentada de acabar por ver esta mudança concretizada durante o período de uma vida.

    O termo Singularidade é recorrente na miríade de sociólogos que têm suficiente abertura para compreender que as consequências de uma tecnologia em franca evolução exponencial interferem em qualquer previsão que se possa fazer a longo prazo.

    A gestão de recursos, o poder do indivíduo face ao monstro social, o transhumanismo, são conceitos reforjados diariamente.

    O conceito de Pensador afasta-se tanto da antiguidade quanto a matemática divergiu após Poincaré. Parte dos Pensadores actuais, seguramente os mais esotéricos, encontram-se nas esferas tecnológicas dos seus laboratórios rodeados de sistemas computacionais necessários para compreender e resolver problemas de outro modo intrataveis.
    Ou não terá sido o Homem que inventou o transístor, ou aquele Outro que modelizou o efeito foto-eléctrico, um Pensador?

    E persiste a questão. O que será a humanidade em 2500. Será o homem2k5 tão próximo do 2k0 quanto este é do 1k5? Vamos só melhorar os automóveis e as máquinas de lavar?

    Uma sugestão de leitura, distrai-me dos clássicos, Peter Watts e o seu Echopraxia. Especulativo mas assustadoramente fundamentado nos anexos de todas as suas obras.

    Abraço.

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  4. Excelente post, Cuca. E não menos excelentes comentários.
    Há 500 anos atrás, quem, contemporâneo de Erasmo de Roterdão seria capaz de o compreender e reconhecer como pensador? Talvez não mais que os seus próximos, uma minúscula amostra de uma elite da sociedade de então.
    Hoje muitos dos nossos pensadores fecham-se em laboratórios, é verdade, são mentes brilhantes e (ainda) desconhecidas; precisamente do tipo das que Erasmo refere no texto que a Cuca transmite aqui.
    Mas a viagem da ciência dos pensadores actuais ainda mal começou, não teve tempo de chegar ao aqui e agora da generalidade. Nem mesmo Feynman, desaparecido no final dos anos 80, se pode dizer que já colhe entendimento global. É primeiro preciso traduzir o seu pensamento em outros níveis de linguagem. É preciso trazer os pensadores de laboratório para fora das portas e contar a história deles, e isto, meus caros, considero uma outra arte, comunicar através de níveis de linguagem e saber chegar a todos. Há, ainda, caro quiescente, no seio dos pensadores de laboratório, certa atitude sobranceira que não ajuda a levar este barco a bom porto.
    Finalmente, ilustro com o bosão de Higgs, que foi encontrado no nosso tempo, pelo menos tudo indica que sim, que era “ele”. É uma partícula que encaixa no conjunto das "pecinhas" elementares de que afinal somos feitos. E quantos de nós, privilegiados contemporâneos, têm acesso a compreendê-lo? Dentro de 500 anos muitos haverá, estou certa. Até talvez dentro de 50.
    Mas ainda temos de esperar um bocadinho.

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    1. Querida Susana, para os próximos 20 anos, já me dou por satisfeita se as pessoas conseguirem entender coisas como o livro de instruções da máquina de lavar roupa ou a bula dos medicamentos. Não há, em matéria de evolução social, ciência que valha à iliteracia.

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