terça-feira, 31 de março de 2015

Comunicações intergalácticas

Diverte-me pensar que aí onde te foste enfiar recebeste Herberto com um sorriso desajeitado e uma garrafa de mau vinho tinto. Porque entre os teus atributos e não há morte que branqueie tão pesada verdade, nem de mim seria de esperar que te desculpasse a menor falta, quanto mais esta que é das graves, nunca esteve o da escolha do vinho. 
Herberto ha-de ter-se sentado à tua mesa com um sorriso não mais ajeitado do que o teu e hão-de ter falado da substância dos ossos, da asa esquerda das borboletas, do rasto que deixa a minhoca nipónica, da velocidade dos ponteiros de uma clepsidra reinventada. ou lá essas coisas que os poetas falam quando se juntam à mesa, em redor de uma garrafa de vinho tinto, para mais, quando o vinho é péssimo e ambos estão mortos.
A ferida da tua ausência é chaga que não há meio de criar crosta para depois passar a cicatriz e a seguir a pequena marca e por fim a breve sombra. E se não há corrente de ar, inusitado verso, fotografia esquecida, que não devolva a estupefação da tua permanente indisponibilidade, o que dizer então da morte de um poeta que, ainda por cima, era um dos teus tão poucos poetas. 
Antes que me assombres na memória do jeito de voltar a cabeça para a direita, o ar sério, o maxilar inferior a mover-se lentamente, informo que podes poupar o discurso da antinostalgia. Pelo menos, por aqui, o vinho tinto é sempre de qualidade. 


2 comentários:

  1. Querida Cuca,
    Sendo como diz, preferiria sentar-me à sua mesa e ouvi-la divagar sobre coisas de mortais vivos.
    Boa noite,
    Outro Ente.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ainda bem, Outro Ente :)
      Eu também prefiro escrever para vivos.

      Eliminar