segunda-feira, 30 de março de 2015

O amor da morte

Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte poderia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu. 

As Intermitências da Morte, José Saramago.


Parece inglória, arrogante, insensata, a minha luta contra Eros, quando até a morte, a morte que de todos os poderes é senhora, se dispõe a pousar a cabeça no cepo do amor, ansiosa por receber a lâmina de uma foice mais poderosa do que a sua, que a decapite e a livre de si própria. Até a morte, senhores. 
(Entretanto acaba de me ocorrer que o amor pode bem ser apenas uma maneira de nos livrarmos de nós próprios).

5 comentários:

  1. A Morte Enamorada? ... Lembrei-me daquele filme "Meet Joe Black"

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  2. ahahahahah! tinha (tentado) publicado um comentário que fazia alusão ao filme "Meet Joe Black", e só agora me apercebo que o vídeo que encabeça o post "começa" por aí... é o que dá passar ao texto, sem seguir a ordem. :-)

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    1. Foram ambos publicados... saio, então, de fininho. Vou ver o vídeo!

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    2. É sinal que nos lembrámos ambas da mesma coisa!

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  3. Esse livro é estupendo, maravilhoso. Começa e acaba com a mesma frase, embora isto seja o que de somenos se pode dizer dele, naturalmente.
    (Essa tua ocorrência de última hora, Cuca... vou reflectir.)

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