sábado, 28 de fevereiro de 2015

A barbearia, os cães e as mulheres.




Com o atraso que caracteriza o ritmo com que entro no mundo real - para muito rapidamente dele sair e regressar para a obtusidade do mais inusitado verso de Herberto, que no fundo, no fundo, é aquilo que verdadeiramente interessa - também eu quero dizer coisas sobre isso da barbearia, dos cães e das mulheres.
Consta que anda para aí uma barbearia que decidiu proibir a entrada às mulheres. Consta também que a mesma barbearia, não satisfeita com o conceito exclusivista, ou excluidor, dependendo da perspetiva de quem fica de dentro ou de fora da porta, decidiu publicitar-se fazendo uma alusão provocatória ao facto de os canídeos (não sei se também aqui com exclusividade aos machos) poderem entrar, em detrimento das mulheres. 
Por princípio, oponho-me a conceitos comerciais que vetam a entrada a um dos géneros e jamais os alimentaria. Tanto me perturbam os famosos ginásios onde menino não entra, como a agora famosa barbearia criada para servir homens e cães. E antes que me venham com a conversa da liberdade na iniciativa comercial privada, relembro que até essa está sujeita às proibições decorrentes da Constituição da República Portuguesa que, a última vez que verifiquei, ainda estava mais ou menos em vigor. O sol da proibição de discriminação de género nasceu para todos. 
O que distingue a barbearia dos ginásios é que estes últimos, que saiba, não tiveram o mau gosto de se promoverem através da uma provocação publicitária que pretende atirar à cara de uma parte da humanidade que, dentro daquele estabelecimento comercial, tem menos direitos do que os cães. 
O "slogan" da barbearia é infame e faz lembrar os antigos cartazes nazis dirigidos à educação do povo alemão, em que os judeus eram comparados aos porcos e reordenados na escala social atrás dos cães. 
E se a proibição de entrada, por ser uma discriminação injustificada, me parece ilegal (idem para os ginásios), mas já não ofensiva, a técnica promocional dos senhores da barbearia parece-me claramente misógina, infame e insultuosa.
Isto legitima um grupo de mulheres mascaradas de cão a invadir a propriedade privada para fazer uma qualquer ação de campanha em nome do feminismo? Não, claro que não. 
O feminismo sofre do mal da má imprensa precisamente por causa de exageros carnavalescos desta ordem. O episódio terá conseguido apenas duas coisas e nenhuma delas positiva: potenciar publicidade gratuita a um estabelecimento comercial que é merecedor de desprezo e dar de comer à ideia feita de que as causas feministas são coisa de gente histérica.
Atingido o estádio civilizacional em que vivemos existem organismos próprios para quem se sente incomodado fazer valer aquilo que acredita serem os seus direitos. Foi para isso que tanto lutaram as mulheres e os homens que se opuseram e todos os dias se opõem à discriminação de género. 
E esses, certamente, não têm nada a agradecer a ações desta natureza. 
E agora vou regressar ao Herberto: 
"Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para o outro, e encontravam-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se, e iam para a cama umas com as outras. E acordavam."
Herberto Herlder, Os Passos em Volta, Porto Editora, pg. 51.

4 comentários:

  1. É largar o assunto, que já foi sobejamente agarrado, Cuca. Falar bem ou falar mal, é falar disso é isso não é de valor para conversas.
    Dito isto, já li qb sobre o assunto mas nada tão bom como este seu apontamento. Grande.
    Beijoca.

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    1. De facto estes senhores conseguiram inédita publicidade ao tasco. A importância do assunto é meramente simbólica, mas os símbolos contam. Obrigada, MD

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  2. Só não concordo com o cartaz remeter para o nazismo ou para o apartheid, como já vi por aí. Sinceramente acho a comparação quase ofensiva. Não discutindo a cretinice da coisa, acho que não passa de um (mau) golpe de marketing. Inteligentemente contaram com a meia dúzia de pessoas que se sentiria por demais ofendida e faria um barulho dos diabos. Tinham razão. A verdade é que ninguém conheceria aquilo se as pessoas tivessem optado por ignorar. Ou apresentar queixa, que é o que qualquer pessoa com juízo deve fazer quando a lei está a ser violada e se sente lesada.
    (estranhamente, nunca vi os homens levantarem sérios protestos por pagarem mais à entrada de uma discoteca, uma forma de discriminação com base no sexo que os lesa mais que isso de não se poder entrar onde nunca se entraria)

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    1. A utilização da ideia "tu não, mas os cães si" é que faz lembrar a propaganda nazi, que usava precisamente o mesmo termo comparativo para os judeus. As semelhanças acabam aí.

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