quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A primeira vez que me perdi

A primeira vez que me perdi foi a última. O estado de perdida encontrou-me com um copo de gin na mão, distraída, numa sala demasiado escura, a ouvir jazz. 
A cantora era negra e usava um vestido da mesma cor da lua, enorme, que se ria do lado de fora da sala. Sobre a montanha, sobre o mar, sobre as varandas e os alpendres, uma lua omnipresente que talvez também até se risse dentro do vestido de prata da cantora.
Depois a mulher - ou a lua, ou a mulher vestida de lua - aproximou-se da extremidade do palco e começou a cantar summertime. 
Foi nessa altura que entre mim e o homem sentado ao meu lado instalou-se um silêncio tão súbito, tão pesado e tão doloroso que foi como se os poucos centímetros que nos separavam, de repente, fossem o espaço que o oceano ocupa entre duas ilhas.
E então, para forçar a minha mente a desocupar-se da tensão do espaço entre as nossas mãos, concentrei-me nos movimentos da cantora.
Mas enquanto a música se espalhava pela sala, com o olhar fixo no palco, vi, juro que vi, o homem sentado ao meu lado dançar comigo na praia sob uma lua que ria. E vi-o deitado na varanda de uma casa desconhecida, desvendar-me cada um dos pontos de luz do céu da noite. E vi-o sob a água translúcida do mar, ensinar-me os peixes e as pedras. E vi-o numa tarde de chuva, na sombra de um farol, desfazer o nó dos nossos dedos. E vi muitas milhas de oceano a correr vazio. E vi-o, por fim, sentado, sozinho, no piano daquela mesma sala, numa noite sem estrelas. E foi a sua música que ouvi. 
E quando a canção chegou ao fim e voltei a olhar, primeiro, para o espaço encurtado entre as nossas mãos, e depois, para os olhos dele, percebi-lhe o rasto de uma lágrima e adivinhei que, durante aqueles três minutos, que poderiam ter sido três meses ou três anos, aquele quase desconhecido viu precisamente o mesmo do que eu.
Foi no tempo desse olhar mútuo, perscrutador, desconfiado, conformado, que percebi que estava perdida. 
Depois, usámos os dias para fazer cumprir a lenda. 
Às vezes, a muitas milhas de distância, em noites sem lua, pergunto-me se poderia ter evitado o passado, caso o futuro não me tivesse sido, de antemão, dado a conhecer.
Dir-me-ia a lua, a rir, que é irrelevante a resposta à minha pergunta.
Uma mulher só se perde uma vez.

5 comentários:

  1. Sabes, Cuca, puseste-me a pensar se não foi por este futuro - que é o teu texto maravilhoso - que a Lua fez todo o seu passado.
    Lindo. Obrigada.

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  2. Sabes, Cuca, puseste-me a pensar se não foi por este futuro - que é o teu texto maravilhoso - que a Lua fez todo o seu passado.
    Lindo. Obrigada.

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    1. Sofro claramente de síndroma de Estocolmo em relação à lua. Trato demasiado bem quem tanto me fez perder :))
      Obrigada, Susana.

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  3. Deve ter sido um bom comentário, o meu, uma vez que vale por dois. :-)

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