quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

A dor dos inocentes

Aquele homem que, até então, nunca tinha conhecido a infelicidade; que foi rei num reino feito de súbditos complacentes; que a pior sombra que se lhe viu passar no rosto foi a do tédio dos fins de tarde de domingo, ou nem isso; que desconhecia o silvo da consciência que endurece a almofada; que da solidão saboreou apenas o breve alívio do excesso de presença dos outros; que da dor de não ter foi protegido pelo pragmatismo das autolimitações no querer; aquele homem, dizíamos nós, que até então nunca tinha conhecido a infelicidade, por força de uma daquelas avarias inusitadas da máquina da existência, em que um grão de areia se desloca do lugar que lhe foi destinado por ação de um brisa vespertina provocada pelo bater das asas de uma ave próxima que se assustou com a aproximação de um barco empurrado para a margem pela sétima onda, viu a sua vontade escravizada pelos desmandos de dois corações imprudentes e destruiu muitas vidas.
Então, aquele homem, do cimo da montanha, contemplando a mortandade espalhada pelo solo do seu reino e incapaz de se dobrar a uma culpa que sabia ser-lhe alheia, expressou a dor possível: 
A dor de "não ter conseguido ser apenas uma boa pessoa".

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