Um dos motivos pelos quais vim para Pirata foi para fugir dos homens que me amam.
Neste navio ninguém me ama e, parecendo que não, esse é um factor não desprezível no aumento da minha qualidade de vida.
Como a minha existência tem o condão de se pautar pela falta de originalidade, sou obrigada a presumir que não haja mulher com mais de trinta e cinco anos que se preze que não tenha pelo menos cinco homens na sua vida que se dedicam à tarefa de amarem loucamente. Claro que falo de um amor especial. Falo daquele tipo de amor louco, permanente e insistente que alguns homens conseguem manter durante toda a vida, enquanto vivem a dita, a fazer outras coisas mais interessantes, como por exemplo, ir viver para África, viajar pelo mundo inteiro e estar casado com outras.
Os homens que me amam são pessoas fantásticas que, contrariando o mito de que o sexo masculino não consegue fazer mais do que uma tarefa de cada vez, ocupam-se da atividade de me amar profundamente ao mesmo tempo que fazem safaris no Quénia, enfiam anéis de brilhantes da Tiffanys a outras, limpam o ranho dos filhos e compram tampões para as respetivas mulheres nas raras fases em que não estão grávidas.
Estas criaturas maravilhosas carregam com elas o seu eterno e omnipresente amor por mim enquanto vão vivendo vidas feitas de um sacrifício atroz, sempre em nome de um interesse superior, que tanto pode ser a necessidade de construir uma carreira internacional como a simples obediência ao dever moral de estarem para ali, até que a morte os colha.
Quando o tédio do quotidiano os faz sentir tão miseráveis que até parece que estão já mortos, resta-lhes o consolo interior de se saberem pessoas especiais, consistindo tal especialidade na circunstância de me amarem para sempre. Nessas alturas, imbuídos pela grandeza da paixão que há tantos anos sentem por mim, os olhos brilham-lhes, os lábios entreabrem-se para deixar escapar um profundo suspiro, a consciência desse sentimento garante-lhes a congregação das duas gotas de adrenalina que lhes circulam nas veias, as suas vidas assumem as cores do grandioso sacrifício que fizeram e o espelho lá de casa devolve-lhes a imagem de um Ulisses que um dia há-de retornar a coisa nenhuma.
Os homens que me amam seriam mais suportáveis se aquela nefasta reunião das duas gotas de adrenalina que ainda lhes restam não os levasse, invariavelmente, à urgente necessidade de entrarem em contacto comigo - estatisticamente falando, quando eu estou a dormir, a trabalhar ou a comprar sapatos - para me comunicarem o facto de, contra todas as expetativas e pese embora as minhas preces noturnas, ainda me amarem loucamente. Depois da comunicação sofredora, uma vez cometida esta loucura arriscadíssima que quase mudou radicalmente o curso das suas vidas, as harmonas lá se recompõem, África parece mais confortável, o ranho dos filhos mais doce, os tampões das mulheres menos deprimentes e torna-se mais fácil retornarem à tarefa de me amar loucamente enquanto vivem as suas vidas.
Estes homens que me privilegiam com o seu amor, é claro, não me têm qualquer préstimo. Não me mudam os pneus do carro, não me fazem canja quando tenho gripe, não me lavam o cabelo, não testemunham a minha vida, nem sequer me aparecem na frente. A sua missão é carregarem ao longo das suas vidas o seu inútil amor por mim e comunicar-mo comovidamente, pelo menos, a cada seis meses. Também me telefonam todos no dia do meu aniversário, normalmente, de seguida, por forma a que, nalguns anos, já me interroguei se estariam todos na fila da mesma cabine telefónica.
Os homens que me amam, antes de eu vir para Pirata e cortar amarras com a minha existência anterior, eram uma praga metafísica na minha vida.
Além de me interromperem o sono, o trabalho e o prazer da aquisição de sapatos, eram a armadilha dos dias maus. Aqueles em que a falta de horas dormidas, o cansaço da labuta ou a inexistência do número 36 naquelas sandálias fantásticas, me rasteiravam um pé e eu caía na asneira de me perguntar se a minha vida poderia ter sido mais feliz se se desse o caso de algum desses homens que me amam não ser tão obscenamente cobarde.
Além de me interromperem o sono, o trabalho e o prazer da aquisição de sapatos, eram a armadilha dos dias maus. Aqueles em que a falta de horas dormidas, o cansaço da labuta ou a inexistência do número 36 naquelas sandálias fantásticas, me rasteiravam um pé e eu caía na asneira de me perguntar se a minha vida poderia ter sido mais feliz se se desse o caso de algum desses homens que me amam não ser tão obscenamente cobarde.
Aqui, sentada no deck deste navio, com o "Estudos Sobre o Amor", do Gasset, caído sobre o colo e a lua a brilhar na minha frente, não tenho a menor dúvida que a resposta é uma rotunda negativa.
No conto que o capitão Mancha um dia escreverá, quando as questões jurídico-legais tiverem prescrevido, poder-se-á ler algo de semelhante, as diferenças estarão apenas no dedo em que está o anel.
ResponderEliminar(Espero que este desenho que agora fiz, se o compreendeste, fique guardado entre nós, piratas, embora eu também esteja a falar demais, a insónia vem hoje à noite na certa, estou a escrever a ver se ganho sono, enfim merdre, como dizia ubu)
Esse ubu parece-me um grande filósofo.
Eliminarportanto, dear Cuca :)
ResponderEliminarGrande texto :) até fiquei feliz por não ter nem um homem que me ame assim :)
ResponderEliminarTalvez os teus sejam tímidos e ainda estejam naquela fase não declarada em que se fazem passar por amigos.
Eliminar:)
isto é, com tempo, saberás (ou já disso tens conhecimento) que também os divorciados são igualmente capazes de tamanha proeza (dos solteiros próximos, na questão da idade, não tenho exemplos, sempre senti por estes uma repulsa pior do que aquela que há anos sinto pelo casamento)-
ResponderEliminarAh, não creio, de todo, que esta necessidade que algumas pessoas têm (de fabricar uma paixão imaginada que as faça sentir-se extraordinárias) esteja relacionada com o estado civil.
Eliminareu, limito-me a não acreditar em pessoas "extraordinárias".
ResponderEliminarEu acredito em tudo. Até em cavalos alados e fadas.
EliminarTenho é uma embirração especial com pessoas que falsificam sentimentos para emoldurar as paredes.
precisamente; é que, já não falo do maravilhoso que tem sido ser mãe, posso falar (publicamente, acredita, sei que me confere, e a outras mulheres, outra legitimidade, estúpida, obviamente, que chapéus há muitos), isso sim, do domínio da fantasia. Conheci-o, principalmente, com homens, adultos, no domínio do real.
ResponderEliminaras minhas filhas são pessoas em crescimento, a generalidade dos homens que partilhou lençóis comigo, tudo o que merece é uma espécie de puta que os pariu, que eu não me apaixono exactamente por filhinhos de sua mãe (e quem diz mãe diz esposa, etc.).
Este puxou-me pelo comentário :-)
ResponderEliminarUma vez, ouvi um homem dizer que o amor não é um sentimento, é uma opção, estava a ouvir a conversa calada e assim continuei, mas nunca me esqueci daquilo. Tenho um respeito enorme pelo Amor (escrevo com letra maiúscula só para facilitar a comparação relativamente àquilo que acho ser uma outra coisa qualquer) é-me irresistível pensar que alguém que diz uma coisa daquelas é como que um burocrata do amor, faz uma opção e essa opção, feita como se de mera matemática se tratasse, deve até calcular ao pormenor os ganhos e perdas, é coisa em que primeiro se investe e depois se mantém, sendo que aquela "patetice como o sentimento" fica fora da equação. Facilmente o imagino com alguém e a amar todas as outras, simplesmente, pelo facto de não Amar ninguém e mais, tenho mesmo a arrogância de pensar que, muitos homens e mulheres, apenas vivem (evitei dizer conhecem)o amor no seu jeito burocrático de ser, e então, amar toda a gente (no sentido romântico do termo, claro) acho que é o placebo de quem apenas ama a fingir, ou se se preferir, dos que nem Amam, nem são livres.
Acho que, na pressa de cumprir os trâmites burocráticos, poucos esperam por ele, aliás, esperar, nos nossos dias, é até muito mal visto no tipo de sociedade do corre corre e da ocupação constante, penso que é por isso que tantos acabam a chamar amor a outras coisas e com um sorriso complacente e cínico a dizer que ele não existe, na impossibilidade de sentir-lhe a especialidade, vulgarizam-no.
Os burocratas do amor é um conceito muito, muito bom.
Eliminar:)
Também partilho dessa convicção de que há muito boa gente que nasce e morre sem fazer uma pequena ideia da intensidade com que é possível sentir-se. Só ainda não percebi se é uma tragédia ou uma glória.
(E é precisamente essa parte da vulgarização dos sentimentos que me aborrece tanto nos "homens que nos amam a todas". Embora talvez tenha precisado de ler o teu comentário para o perceber)