sexta-feira, 18 de março de 2011

partilhando

A. sempre foi doméstica. fez a escola que foi considerada suficiente pelos seus pais. em casa estudou o piano até ao fim, salvo os exames para o Conservatório. mas a sua dedicação maior foi ao governo da casa – aprendeu a fazer tudo porque – como dizia a sua mãe – “quem não sabe fazer, não sabe mandar”.

já não muito nova casou-se com S.. comerciante de tecidos finos, bem estabelecido e onze anos mais velho. viúvo de um casamento que não sobreviveu ao primeiro parto de I.. o varão concebido na noite de núpcias levou consigo a mãe, deixando S. amargo por muito tempo.

A. veio a dar-lhe três filhas.
um amor imenso. de pura veneração. tudo entendia do seu marido. a tudo acorria e socorria. a solução de muitos problemas encontrou-as S. na ponta dos dedos de A. quando ela lhe desembaraçava os cabelos. conversavam muito. ela bebia-lhe a tristeza que, por vezes, voltava com o vazio daquele filho perdido. daquela I. tão nova e amada. A. entendia tudo.

viveram vida cheia e feliz, com as infelicidades próprias da vida.

a viuvez tocou A. aos 82 anos de idade. a árvore velha e seca em que se tornara S. finalmente tombara. ela aceitou. serena.

uma das filhas quis as partilhas. contra a vontade das outras que queriam esperar que a mãe fosse também. obviamente, era a mais abastada delas.

A. assumiu com dignidade a função de cabeça-de-casal e apresentou-se para relacionar herdeiros e bens.
cabelo pouco grisalho atendendo à idade, arranjado. estatura acima da média da sua geração. perfume a rosas muito concentrado. aquele que é um cheiro velho. bom, mas velho. seco. cheiro de avó.

respondeu às questões que lhe iam sendo colocadas com clareza e calma próprias de quem tem tempo. acompanhada do seu advogado, ilustre causídico que há um par de anos se esquiva à reforma, daqueles cheios de verbo bonito de se ouvir.

findas as declarações e junta a documentação pertinente, após as combinações finais da praxe, A. pediu a palavra. na sua calma abriu a mala que trazia no braço e retirou um papel dobrado em quatro, que abriu. a tinta permanente manchava as costas deixadas em branco. era um pedido de S., que tinha ficado de cumprir.

- “Senhor Dr., há uns anos atrás o meu marido pediu-me que quando chegasse a sua hora a Senhora Dona E. não fosse esquecida. E pretendia que ela ficasse com a casa em que vive. Não sei se também devo juntar esta carta agora…”

- “Oh Senhora Dona A., mas quem é essa Senhora, qual o parentesco com o seu marido? Senhor Dr….”

- “D. A, a Senhora não me falou em nada disto…”

- “Pois não Senhor Dr..”

- “Portanto, esta Senhora é…”

- “Não é parente, Senhor Dr. E eu também quero que ela fique com a casa onde está. Ele queria assim. E eu também quero. Para cumprir a vontade dele.”


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