quarta-feira, 30 de março de 2011

dos bichos que não podes ter

vais à praia e vês o peixinho. o peixinho se encanta de ti, num bronzeado dourado, cabelo molhado e pele a cheirar a fruta dos trópicos. pede comida. e tu dás. o peixinho fica contente, faz mais umas acrobacias e pede mais. e tu dás. muito riso. escutam-se hulahulas e o sch-sch-sch das folhagens. coqueiros e palmeiras.


o sol esconde-se, a brisa levanta e o dia acaba. arrumas as tuas coisas, vens para casa. insólito: o peixinho segue-te. mais: até se adianta! quando começas a sacudir a areia dos pés olhas e está sentado no capacho de entrada, com cara de quem está fora de água. tu o acolhes, não sem antes o mandares embora, ainda com convicção. é só esta noite – dizes a cantar –; amanhã, voltas para o mar. num aquário improvisado, finge que dorme todo contente, mas está a magicar agrados.


a manhã seguinte é de nevoeiro, desculpa cúmplice. então vamos passear e vais amanhã, que é Domingo. corda à volta do aquário. passeio. conversa. quotidiano de Sábado. frutaria, florista… peixaria não, seria de muito mau gosto. hoje vamos ao talho!, escarnece o peixinho. quotidiano de sábado – um perigo para a sedução. tarde de jardinagem. o peixinho assiste os teus trabalhos do aquário suspenso no ramo de uma camélia a rebentar de verdes folhas lustrosas. as pétalas já se tinham ido todas. duram tão pouco… gostava de as ver, diz o peixinho. olhas de soslaio – bem sabes, peixinho, que só aparecem no fim do Inverno e que os primeiros mornos da Primavera levam os últimos botões... o peixinho sabe que tu sabes que ele sabe. aliás, tu sabes que ele sabe que tu sabes. sorriem. prossegues na jardinagem.


o peixinho vai ficando, sempre com as desculpas cúmplices da natureza. acaba por conhecer as camélias, que até o desiludem. tanta expectativa…


acabas por enxotar oficialmente o gato que costumava fazer umas visitas surpresa. para o efeito, recorres a bombinhas de Carnaval do stock da mercearia ao fundo da rua. na mesma leva, assustas definitivamente os pombos e outros, como as gaivotas que em dias de tempestade no mar vinham passear até à colina da tua casa. ultrapassas vários incómodos. até gente de quem gostas mas que não gosta de peixe.


numa manhã de Junho desaparece sem deixar bilhete. nem uma escama azul marinha de recordação. ainda tentas ligar-lhe pelo búzio que ambos apanharam no Outono passado. sem resposta.


o peixinho é um bicho que não podes ter. ouve bem o que te digo. tem a tendência de voltar para o mar. e deixa-te uma espinha atravessada na garganta que pica para sempre.


7 comentários:

  1. O teu sentido de oportunidade não poderia estar mais apurado :)

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  2. A estória é muito bonita. Infelizmente é também verdadeira.

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  3. repete comigo: vida vivida é vida vivida.

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  4. Que pensamentos ou sentimentos terá o peixinho num pequeno copo e com muito pouca água???

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  5. lá está Titã... eu digo que até pode achar graça por uns tempos mas acaba por ter que voltar para o mar. é da natureza dele.

    mas não sei dos pensamentos... tem alguma pista?

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  6. Estive a pensar muito sobre este assunto e concluí que, afinal, eu sou o peixe.

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  7. sim querida, também pode ser... não descarto a possibilidade.

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