Há um novo protocolo da morte na era das redes sociais. A confirmação da notícia veio através de um grupo de chat, cuidadosamente escolhido para o efeito. Alguns dos visados puderam compartilhar a sua incredulidade em direto, perante um grupo heterogéneo de pessoas que não eram todas conhecidas umas das outras. O grupo de chat, em poucos minutos, transforma-se num grupo de enlutados anónimos, em que uns partilham a sua indignação e desgosto e outros, sofrendo a mesma indignação e desgosto, prontamente disponibilizam o conforto institucional adequado com recurso a variantes letradas da frase “é a vida". Uns manifestam o pesar pelos horrores do quotidiano e falta de tempo para fazer aquilo que verdadeiramente importa e que é passar tempo com os amigos e mostrar-lhes o quanto os amamos. Os mais dinâmicos não perdem tempo e combinam encontros ali mesmo, naquele grupo de chat criado para anunciar a morte de um amigo comum. Não há um tom festivo na promessa do encontro, há um pesar, mas, parece-me, menos pela morte do que pela urgência na obrigação de rever os amigos vivos antes que também estes morram. Nem todos os elementos do grupo vêem as mensagens em simultâneo. Os que só agora chegam, interrompem as combinações dos almoços para manifestar o seu choque e pesar, sendo prontamente apoiados por aqueles que há uma hora atrás foram eles próprios destinatários das mensagens de consolação e que, agora, refeitos do pasmo, retribuem com nova variante da mesma frase "é a vida". As pessoas fornecem ainda detalhadas justificações das razões pelas quais só agora viram as mensagens, relatando os seus afazeres quotidianos e lamentando-se pela falta de tempo para aquilo que verdadeira importa, que é estar com os amigos e mostrar-lhes quanto os amam. E se a notícia da morte é abruta porque não pode ser de outra forma, a causa da morte é anunciada suavemente através do silêncio geral que se segue à pergunta repetida pelos mais desatentos. Ao fim de algum tempo, as pessoas deixam de perguntar qual a causa da morte, interpretando corretamente o silêncio coletivo e manifestando uma nova incredulidade ou redobrando as manifestações de pesar, porque, efetivamente, nem todas as cores da morte colhem o mesmo nível de desgosto. Umas horas depois, é anunciada a hora do funeral. Os retardatários ainda estão a marcar encontros e há novas palavras de consolação para aqueles que só agora chegaram à conversa. A comunicação da hora do funeral desencadeia uma nova dinâmica no grupo. As pessoas aproveitam aquela mesma conversa para organizarem boleias, acordarem locais de recolha, trocarem números de telemóvel. Simultaneamente, há quem considere importante explicar ao grupo que não pode comparecer no funeral, colocando no detalhe da justificação da falta o mesmo cuidado que teria se estivesse perante o próprio morto. Reparo que as pessoas que comunicam a sua futura falta ao funeral, invariavelmente, insistem em manifestar uma vez mais o seu desolo, como se a duplicação do desgosto aliviasse qualquer grão de areia na consciência ou como se quisessem assegurar aos outros elementos do grupo que se não vão é mesmo porque não podem e não porque não estarem tristes com a notícia e não preferirem que o amigo continuasse vivo. Entre o choque, a ausência da pergunta do dia, as manifestações de carinho e apoio, as combinações e as justificações das faltas, ainda há quem chame a atenção para os textos de homenagem escritos naquela mesma rede social, recomendado leituras.
Entre as pessoas daquele grupo de conversação, não estão os amigos mais íntimos do morto. Presumo que a organização estabelecida pelo novo protocolo da morte seja de tal forma perfeita que, paralelamente, exista um outro grupo de conversa, exclusivo aos amigos íntimos, onde todas as perguntas sobre a causa da morte sejam prontamente esclarecidas e onde as histórias felizes que se relembram em homenagem ao morto tenham menos anos.
Não sou ingrata nem cínica. Reconheço as vantagens do novo protocolo. O protocolo, novo ou antigo, qualquer protocolo, serve essencialmente para manter emoções sob controlo, evitando gestos desadequados e contendo danos. A intenção é sempre boa e esta nova forma é prática e eficaz. A informação útil flui, a inútil alivia quem a presta, os cuidados básicos ao nível do apoio psicológico são imediatamente prestados pelos enlutados anónimos. Não se incomoda quem não deve ser incomodado. Os comportamentos que descrevi em cima, também os tive. Estas pessoas, tenho válidas razões para o presumir, estavam a ser sinceras no seu desgosto. O método não chocaria o próprio morto que tantas vezes recorreu às redes sociais gritando pelo socorro que, é evidente, nenhum de nós estava habilitado a prestar-lhe.
O que não consigo deixar de pensar é que na eficiência pragmática deste novo protocolo da morte - sem voz nem olhos - há o sabor amargo do mesmo veneno que está na génese de factos idênticos ao agora protocolado.
"É a vida!"
"É a vida!"
É a morte, Cuca. É a necessidade de exorcizar. É, como diz, um amargo de boca que é preciso bochechar com álcool, gargarejar com lágrimas, para, finalmente, refrescar com o elixir de todos os dias.
ResponderEliminar"É a vida!"
Um abraço,
Outro Ente.
Certo. Mas o elixir virtual é também ele uma espécie de fantasia.
EliminarÉ preciso que o silêncio seja preenchido.
ResponderEliminarO desconforto da ausência (das palavras e do morto) é muito grande.
já soube do caso em que o individuo faleceu e o perfil continua lá no fb, e todos os anos alguém lhe dá os parabéns...
ResponderEliminarIsso é tenebroso.
EliminarPirata, fico tão feliz por ter calcado neste espinho. Não compreendo tais demonstrações. Digo eu que equivale a mudar o wallpapper do pc para mostrar a quem está à nossa volta e possa ver o ecrã, que mudámos de humor: cores frias para melancolia de preferência com frases de obras que nunca terão tido sequer a curiosidade de ler.
ResponderEliminarEscapa-me o entendimento para isso, mas suponho que só querem companhia quando lhes lembraram a solidão. A outros nem isso consigo atribuir. É apenas uma chamada de atenção sobre a infinita vaidade pessoal.
Consegue explicar-me porque raio escreve alguém para um familiar próximo, desaparecido por exemplo, num facebook ou outra rede social em contornos melodramáticos dignos da melhor novela mexicana. Terá uma enorme percentagem da população mundial caído na total falta de noção do que é real? Não sei, mas sei que para mim não serve.
Pode ser uma versão atualizada das antigas carpideiras...
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