Duas vezes por semana, Reboredo, o médico ortopedista, personagem ofertada, dá-me aulas de dança no convés do navio. Mandei vir um gira-discos e uns velhos discos em vinil de tangos argentinos, encomendei uns sapatos de dança e meia dúzia daqueles vestidos às flores, de cintura estreita e saia rodada. No início, o médico resistiu às minhas insistências para que enfiasse uma rosa entre os dentes, fazendo os possíveis por me convencer que, na realidade, o tango não se dança assim. Mas os meus problemas com a interiorização do conceito realidade são de tal forma notórios e públicos que o bom doutor acabou por entender aquilo que mais tarde ou mais cedo todos entendem: que contrariar-me é, em igual medida, inútil e perigoso.
Ultrapassado este obstáculo, passámos, duas vezes por semana, a ser muito felizes na pista de dança improvisada, ao som do tango argentino e sob a vigilância de uma lua estupefacta.
Reboredo, o médico ortopedista, é demasiado existencialista para poder algum dia ser pirata, mas além de se ter revelado um excelente professor de dança é a única pessoa neste navio com quem posso discutir filosofia sem correr o risco de ter um motim a bordo.
Ontem, durante a lição de dança, tivemos a seguinte conversa filosófica:
- Nabokov diz que além da noite exterior, todos conhecemos a noite interior num ou noutro momento do dia.
- Capitã, saiba que todas as noites se iluminam com velas.
- Ora, Reboredo... Mas estou a falar daquela escuridão que nos circula nas veias. Uma escuridão cega à luz dos astros.
- Capitã, saiba que os astros são a solução para qualquer tipo de noite.
- Não estou a perceber a sua metáfora. Terá de ser mais explícito.
- Serei. A capitã precisa de um namorado.
- Não conheço esse livro. Quem é o autor.
Nessa altura reparei que Reboredo, o paciente médico ortopedista, cuspiu a rosa e por muito pouco não me deixou cair.
A mim o que me parece verdadeiramente fascinante é o Reboredo conseguir dizer tanta coisa com uma rosa nos dentes... ;)
ResponderEliminarSua pragmática!!!!
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