Embora fosse eu a viajante e ele o Imperador, naquela noite, deitados no jardim suspenso do palácio, foi sua a descrição da cidade e meu o silêncio.
Falou-me sobre cada uma daquelas pequenas rochas no mar que eram afinal as ilhas onde, à noite, os miúdos maltrapilhos reinavam, devolvendo aos pescadores, antes do amanhecer, os barcos que roubavam para as suas migrações noturnas. Descreveu-me o fundo do mar forrado de estrelas vermelhas e vigiado pelo deslizar lento das mantas, que, dizia, quando vínhamos por bem, para soltar das redes uma tartaruga aprisionada ou para jogar às escondidas com o lírio albino que se dizia ter cem anos, nos enlaçavam num abraço macio que haveria de fazer com que fosse impossível esquecê-lo. Contou-me sobre as cascatas, em cujas águas quentes, ao crepúsculo, se banhavam sereias, reunidas pelo chamamento do mais triste dos cantos. Revelou-me uma baía assombrada pelo fantasma único de dois amantes separados que, a cada lua cheia, regressavam para se amarem, trazendo espelhados no olhar o branco das nuvens e da espuma do mar de uma tarde longínqua. Contou-me sobre as grutas que os homens esculpiram debaixo da terra e que eram a invisível cidade onde corriam a esconder-se quando os piratas se aproximavam da costa e desembarcavam dos seus grandes navios em busca de alimento e amor.
E para mim, que antes julgara conhecer a cidade, tornaram-se-me invisíveis as chaminés, as casas de basalto, as ruas circulares de pedra escura, um pelourinho solitário, os moinhos de vento, e passei a circular por entre as lendas, comprando o pão a sereias, fazendo vénias a crianças que eram governadores de ilhas mágicas, recebendo o abraço inesquecível das mantas, amando em baías assombradas e aceitando a inevitabilidade da chegada do navio pirata que haveria de me levar.
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Entre KUBLAI KHAN e MARCO POLO, segundo diz Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis, editorial teorema, terá sucedido o seguinte diálogo:
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Entre KUBLAI KHAN e MARCO POLO, segundo diz Italo Calvino, em As Cidades Invisíveis, editorial teorema, terá sucedido o seguinte diálogo:
"POLO: – ... Talvez este jardim só exponha os seus terraços para o lago da nossa mente...
kUBLAI: – ... E por mais longe que nos levem as nossas atribuladas empresas de guerreiros e de mercadores, ambos guardamos dentro de nós está sombra silenciosa, esta conversa pausada, está noite sempre igual.
POLO: –A menos que eu se dê a hipótese oposta: de os que se afadigam nos acampamentos e nos portos só existirem porque pensamos neles nós dois, encerrados entre estas sebes de bambu, imóveis desde sempre.
KUBLAI: – De que não existam a fadiga, os bezerros, as pragas, o fedor, mas só esta planta de azálea.
POLO: – E de que os carregadores, os calceteiros, os varredores, as cozinheiras que limpam as vísceras das galinhas, as lavadeiras ajoelhadas sobre a pedra, as mães de família que mexem os arroz aleitando os recém-nascidos, só existam porque nós pensamos neles.
KUBLAI: – Essa conjectura não me parece que nos convenha. Sem eles nunca poderíamos ficar a balançar encasulados nas nossas camas de rede.
POLO: – Então a hipótese é de excluir. Portanto será verdadeira a outra: a de que existam eles e não nós.
KUBLAI: – Assim demonstrámos que se nós existíssemos, não existiríamos.
POLO: – De facto, aqui estamos."
Por estes portos não seria capaz de traçar a rota no mapa nem fixar a data da abordagem. Por vezes basta-me um breve trecho que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes no nevoeiro, o diálogo de dois transeuntes que se encontram durante as suas deambulações, para pensar que partindo dali juntarei peça a peça a cidade perfeita, construída de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, por sinais que alguém manda sem saber quem os apanha. Isto diz Marco, que não sabe que não há cidades perfeitas, mas há textos que tendem assintoticamente para a perfeição.
ResponderEliminarPresumo que se esteja a referir ao texto do Calvino. :)
EliminarBoa noite, Xilre
Durante longos anos, foi o livro da minha vida. Continuarei a adorar cada palavra, cada cidade, mas agora já não consigo dizer coisas como o livro da minha vida, a fruta da minha vida, o perfume da minha vida, etc.
ResponderEliminarAgora, são mesmo as filhas da minha vida, o que me permite ser melhor do que um livro, uma fruta, um perfume :)
Sem dúvida que é muito olivrodaminhavidável.
EliminarPor mais que se guardem conversas, momentos, locais, na suposição de que são perfeitos, não passa disso, de uma suposição. A perfeição só existe na imaginação. A realidade está aí, Nua e crua, pronta a abanar-nos.
ResponderEliminarBom dia, cara Cuca :)
Há pequenas linhas, instantes, de perfeição. São aqueles que, normalmente, nos escapam.
EliminarComprei hoje o livro. 6 euros num alfarrabista do Porto.
ResponderEliminarÉ impossível não gostar do livro.
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