Num maio distante e de má memória, por ocasião do dia em que o céu se partiu e desfez-se em minúsculas pedras geladas que se espalharam pelo mundo, entrei em casa e abri as janelas para deixar entrar as gaivotas que se vieram abrigar na minha varanda.
Para acompanhar a terrível música do céu a desfazer-se de encontro à calçada, sentei-me ao piano e toquei as primeiras notas.
Quando o quinto dedo da mão direita repetiu um sol sustenido vi entrar pela janela uma mulher vestida de verde que trazia pendurada no rosto a expressão marmórea dos que abandonaram. Seguiu-a um homem de olhos verdes que exibiam a firmeza de quem viajou o mundo. E um governante escondido por um ramo de flores no passo apressado de quem está atrasado para um encontro. E uma mulher de óculos de massa e camisa branca que seguia o governante. Foi então que, pela mesma janela, entrou uma mulher que carregava junto ao peito um livro cujas letras se sumiam em contínuo anticonto e um mágico que, na sua varinha, dir-se-ia procurar a mulher que um dia fez sumir.
Levantei-me do piano e chamei Martinica para que servisse um chá àqueles que, soube-o muito depois, eram personagens exiladas das suas próprias estórias.
Nada perguntei e, confesso, nenhuma estranheza senti. Aceitei há muito que a bizarria é o labirinto no jardim do mundo. Em comum, tinham apenas uma rara obsessão com vozes intermináveis que saíam de telefones e das quais, de uma forma ou de outra e pelas mais diversas razões, todos pareciam fugir.
Martinica confessou-me então que, não gostando de bizarrias em dias em o que céu se desfaz em pedaços, deu-lhes um chá de sumiço. Sugeriu-me que os fotografasse para memória futura. Expliquei-lhe que me ensinaram que é na memória, e apenas nesta, que devem guardar-se as melhores imagens.
Terminado o chá, a sala ficou subitamente vazia, as pedras deixaram de cair do céu e eu regressei ao piano.
C'est magnifique!
ResponderEliminarFiz uma espécie de parasitagem das vossas ideias. Que é o que resta a quem sofre com a desinspiração.
EliminarAssim guardada e tão bem contada, é possível que um dia também a desqueça.
ResponderEliminarÉ um verbo maravilhoso, não é?
EliminarFantástico.
ResponderEliminarObrigada. :)
EliminarOh, tão lindos, os nossos personagens! Todos tão etéreos :)))))
ResponderEliminarO chá de sumiço tende a tornar as pessoas etéreas.
Eliminar:)
vou actualizar-me e já volto :)
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